Mães se desdobram para voltar ao mercado de trabalho; pandemia traz retrocessos
Maternidade dificulta vida profissional da mulher e crise da Covid-19 acentua diferença com os homens
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Quando decidiu que queria ter filhos, a publicitária Luciana Habermann Silva, 40 anos, mãe de Alice, 5, e Júlia, 2, deu uma pausa em suas atividades no mercado de trabalho antes mesmo de engravidar. A intenção era dar total atenção ao bebê que viria, após passar oito anos tentando engravidar. A pausa, no entanto, durou mais do que ela pensou.
Luciana só conseguiu voltar ao mercado de trabalho formal seis anos depois da primeira gravidez, já com duas filhas, em janeiro deste ano. A permanência no emprego, porém, foi curta, de apenas cinco meses.
A publicitária conta que tentou desenvolver algumas atividades remuneradas de forma autônoma. Chegou a abrir uma empresa de consultoria quando Alice tinha pouco mais de um ano. Poucos meses depois, descobriu que estava grávida da segunda filha e recebeu o diagnóstico de que sua primogênita está no espectro autista.
“Quando eu descobri que estava grávida da Júlia eu encerrei [as atividades da empresa] e quando eu descobri que a Alice era autista eu entendi que não ia ter como trabalhar. Porque quando você descobre que uma criança está no espectro há um tempo para processar aquilo”, afirma ela.
Luciana passou a dedicar todo seu tempo às filhas, principalmente à Alice. “Eu me dediquei só a ela. Era médico, terapia, escola. A gente ficava três horas no trânsito por dia. E a Júlia junto. Eu não conseguia me imaginar trabalhando nesse cenário”, conta.
Em março de 2020, com a pandemia, a situação de Luciana piorou. Ela se viu trancada com as filhas em casa, sem escola, terapia ou médicos. “Eu não iria levar para terapia e escola no meio de uma pandemia.”
O jeito foi adaptar a rotina para cuidar das meninas. Como se formou em pedagogia depois de descobrir o diagnóstico da filha, ela desenvolveu uma técnica própria para dar andamento ao tratamento de Alice em casa.
“Quando eu comecei a trabalhar com ela, ela evoluiu muito, mas muito mesmo. Percebi algo que eu já vinha notando e tinha muito medo de admitir, que, na verdade, de 70 a 80% da responsabilidade da evolução da criança é da família.”
Alice, que mal falava e ainda usava fralda, superou as dificuldades. A mãe, no entanto, sentiu que tinha se deixado de lado e começou a despertar o desejo de voltar ao mercado de trabalho. Quando tem filhos, a gente se entrega, principalmente eu, que tinha um sonho tão grande. Foi uma experiência tão mágica a maternidade, que eu realmente me deixei de lado.”
Luciana não se intimidou, tirou a poeira do currículo, atualizou suas redes sociais e passou a ir em busca de emprego. Conseguiu a vaga em janeiro, em um local onde já havia trabalhado há oito anos, mas foi demitida há pouco mais de uma semana.
“Eu fiquei muito tempo fora do mercado de trabalho e me contrataram na pandemia, em home office. Não conseguiram me ensinar o trabalho e me demitiram alegando que faltava habilidade técnica”, conta.
Essa dificuldade relatada por Luciana é um dos motivos que atrapalham o retorno das mães ao mercado de trabalho, conforme explica a pesquisadora Laísa Rachter, do Ibre (Instituto Brasileiro de Estudos Econômicos), ligado à FGV (Fundação Getulio Vargas).
“Quanto mais tempo demora para que elas voltem a trabalhar, mais as mulheres deixam de acumular capital humano específico. E, quando conseguem retornar ao mercado de trabalho, voltam em condição pior”
As mulheres sabem das dificuldades e, muitas vezes, ou abrem mão do mercado, ou de direitos trabalhistas. Pesquisas indicam que, das trabalhadoras que têm o benefício da licença-maternidade estendida, de seis meses (hoje o comum é quatro), 40% não aceitam. E, um ano depois, 20% deixam o mercado de trabalho.
A entrada e a permanência da mulher no mercado de trabalho tiveram crescimento expressivo nos últimos 50 anos, representando uma das maiores revoluções femininas, mesmo com todas as dificuldades que a mulher ainda encontra, como salários menores que os dos homens e falta de mobilidade na carreira, principalmente quando se tornam mães.
Laísa afirma que a pandemia de coronavírus acentuou um cenário já complicado. “A pandemia amplifica todos os problemas que já existiam”, diz. Entre 2019 e 2020, a queda na participação das mulheres no mercado foi de 7,5%. O percentual é maior que redução da participação de homens, que ficou em 6,1%.
No entanto, quando as mulheres têm filhos menores de dez anos, a participação delas tem queda de 7,8%, No caso dos homens com filhos, a redução foi de 4,2% no mesmo período.
Para a pesquisadora, os retrocessos só serão corrigidos com algumas mudanças: fim da cultura corporativa machista, em que mulheres ganham menos ou ficam de fora da promoção para cargos importantes; alteração na licença-maternidade, buscando-se uma licença parental, em que homens e mulheres tenham as mesmas obrigações com os filhos.
Ela também cita a divisão igualitária do trabalho doméstico, já que hoje as mulheres dedicam mais horas do que os homens; e ampliação do número de creches públicas, para que as famílias tenham onde deixar as crianças enquanto vão trabalhar, atendendo especialmente as mulheres nas classes menos favorecidas.
Empreendedorismo
Empreender já estava nos planos de Giovanna Novelli, 31 anos, formada em turismo, para poder ficar mais tempo com os filhos, quando os tivesse. O motivo é que seu trabalho era muito longe de sua casa, o que, para ela, seria complicado quando se tornasse mãe.
Giovanna conta que já tinha tudo esquematizado em sua cabeça. No entanto, na gravidez de Maria Luísa, hoje com 1 ano e 9 meses, ela já teve que mudar parte dos planos. “Eu era muito elétrica e já tinha planejado tudo, pois sempre quis empreender, mas sofri de hiperêmese gravídica, que é uma doença que faz vomitar muito, e não pude fazer mais nada”, conta.
A filha nasceu, tudo corria bem e quando Maria Luísa tinha seis meses, Giovanna acreditou que seria o momento certo para colocar seus planos em prática. Mas veio a pandemia de Covid e ela perdeu toda a rede de apoio. “Meu marido trabalha em serviços essenciais, então a gente não podia ver ninguém. Não tive ajuda de minha sogra ou de minha mãe. Fiquei sozinha em casa com a Malu.”
Em abril de 2020, ela mudou mais uma vez a rota e abriu a Mania de Maria, uma loja virtual de roupas infantis. “Eu pensei: não vou me limitar. Vou abrir o meu negócio, mesmo trabalhando sozinha e criando minha filha em casa, em tempos de pandemia. Eu sinto que transformei uma pedra numa escada”, afirma ela.
Alergia da filha fez mãe virar confeiteira
Abrir o próprio negócio foi a opção encontrada pela fisioterapeuta e hoje confeiteira inclusiva Camila Lossano Gouvêa de Andrade, 32, mãe de Beatriz, 5, e Luana, 2, para garantir a sobrevivência dela e da filha caçula. Com pouco dias de vida, Luana teve uma crise alérgica grave e a família descobriu que a menina era alérgica a 20 alimentos.
Como amamentava, Camila precisou cortar de sua rotina uma grande quantidade de itens. “Como eu amamentava, tinha que entrar na restrição desses alimentos, porque ela mamava exclusivamente o meu leite”, explica.
Luana reagia não só aos alimentos, mas a traços deles, o que fez a mãe passar um bom tempo comendo só arroz, legumes e salada, e tomando chá. “Por conta da alergia e dessas reações que ela tinha até mesmo a traços de alimento, obviamente eu não consegui voltar a trabalhar. Eu me dediquei a ela, à saúde dela.”
Cansada de não ter o que comer, a confeiteira adaptou receitas da internet e, começou a se profissionalizar na nova área, de confeitaria inclusiva. Com isso, abriu seu próprio negócio, onde vende alimentos sem trigo, leite, ovo, soja e oleaginosas (castanhas, amendoim, amêndoas e a pecã).
“Dessa dificuldade surgiu a Da Lu Sem Leite, uma cozinha inclusiva, que está crescendo. Tenho metas e planos, e o meu objetivo é continuar atendendo as pessoas, podendo levar alegria conforto em forma de comida.”
Maternidade e mercado de trabalho | Desafios
- A evolução da participação das mulheres no mercado de trabalho é uma das maiores revoluções dos séculos 20 e 21
- No entanto, a pandemia de coronavírus está trazendo retrocessos, dificultando a colocação e a recolocação de mulheres no trabalho, principalmente das mães
Recessão feminina
- O fenômeno de retrocesso no que diz respeito à participação da mulher no mercado de trabalho vem sendo chamado no mundo "she-cession" - recessão feminina
- A situação se agrava quando a mulher é mãe; na pandemia, muitas acumulam tripla jornada, com home office e cuidados com filhos e com a casa
- Outras, no entanto, seguem em exposição ao vírus porque trabalham em áreas essenciais
- Há ainda as que estão desempregadas
Veja a queda na participação das mulheres com filhos no mercado de trabalho
- A pandemia trouxe piora em todos os segmentos para homens e mulheres, mas se agravou no caso de quem tem filhos, em especial, para as mães
Participação dos homens (em %)
Perfil | Em 2019 | Em 2020 | Queda |
Homens em geral | 71,8 | 65,7 | 6,1 |
Homens sem filhos | 67,9 | 61,5 | 6,4 |
Homens com filhos de até 10 anos | 81 | 76,8 | 4,2 |
Participação das mulheres (em %)
Perfil | Em 2019 | Em 2020 | Queda |
Mulheres em geral | 53,3 | 45,8 | 7,5 |
Mulheres sem filhos | 51 | 43,8 | 7,1 |
Mulheres com filhos de até 10 anos | 58,2 | 50,4 | 7,8 |
Situação da mulher já era ruim
- Segundo a pesquisadora Laísa Rachter, da FGV (Fundação Getulio Vargas), a situação das mulheres já era ruim na comparação com homens mesmo antes da pandemia
- E as mães também sofriam mais no mercado de trabalho, mas a crise da Covid piorou o cenário
Diferenças
- No Brasil, entre 1970 e 2020, a participação de mulheres entre os ocupados subiu de 19,8% para 41,7%
- Em cargos de maior remuneração, as mulheres ganham menos de R$ 0,70 para cada R$ 1 pago aos homens
- No mercado de trabalho em geral, essa diferença era de R$ 0,80 pagos a mulher a cada R$ 1 recebido por homens
Fontes: FGV (Fundação Getulio Vargas), Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)