Devotos se preparam para a canonização de Irmã Dulce
Transformação da baiana em santa será um dia depois do dia Padroeira do Brasil
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No próximo domingo (13), o papa Francisco conduzirá no Vaticano a cerimônia que tornará a baiana Irmã Dulce a primeira santa nascida no Brasil. O evento de canonização da beata vai encerrar uma semana de grandes emoções para os fiéis brasileiros —um dia antes, no sábado (12), os devotos se unem para celebrar a santa mais popular do país, Aparecida, a Padroeira do Brasil.
Conhecida como “Anjo Bom da Bahia”, Irmã Dulce (1914-1992) teve a canonização agendada após o Vaticano reconhecer dois milagres atribuídos a ela. Ao final da cerimônia, ela passará a ser chamada de Santa Dulce dos Pobres.
O título descreve bem a freira que abdicou do conforto da vida de classe média para se dedicar aos jovens em situação de rua e, especialmente, aos doentes. Era comum avistar Irmã Dulce em Salvador vestida com seu hábito azul e branco, com a mão estendida, pedindo “uma ajuda para meus pobres”.
Foi essa humanidade no caráter da freira que conquistou a dona de casa paulistana Maria da Penha Louzada Lozano, 79 anos, devota de Irmã Dulce há mais de 45 anos, desde uma visita que fez a Salvador.
“Conheci uma família lá e me deparei com a devoção a essa mulher tão incrível, franzina, de saúde frágil, mas que mesmo assim dedicava sua vida a cuidar de outras pessoas.”
Maria da Penha está orgulhosa. “Ela merece [ser canonizada] por tudo o que fez a quem necessitava. Mais do que uma religiosa, ela era uma humanista”, diz ela, que já pediu pela intercessão da religiosa. “Como ela é referência em saúde, pedi ajuda quando meu marido e uma das minhas filhas operaram”, disse. “Sempre peço pela saúde das minhas três filhas.”
A dona de casa celebra as coincidências de sua vida e da freira. “A Irmã Dulce tem o nome da minha filha Rita e a outra, Sílvia, nasceu no mesmo dia que ela, 26 de maio”, conta Maria da Penha.
Devota de Nossa Senhora Aparecida desde criança, a jornalista Karla Maria de Souza, 35 anos, também se tornou devota de Irmã Dulce quando conheceu o legado que a freira deixou em Salvador. A admiração se materializou no livro “Irmã Dulce - A Santa Brasileira que Fez dos Pobres Sua Vida”, que será lançado neste mês pela editora Paulus.
“Eu me identifico com a história da Irmã Dulce, porque ela teve uma santa rebeldia para fazer o que sentia ser sua missão, ajudar os mais pobres. Isso me sensibilizou.”
“Rebelde”, Irmã Dulce foi afastada de sua congregação por dez anos porque, envolvida com suas ações sociais, não seguia regras rigorosas impostas às freiras, como a determinação de se recolher às 18h.
Legado na Bahia
A obra de Irmã Dulce é muito presente em Salvador. A instituição filantrópica OSID (Obras Sociais Irmã Dulce) abriga um dos maiores complexos de saúde do Brasil, com atendimento 100% gratuito, pelo SUS.
No local são realizados cerca de 3,5 milhões de procedimentos ambulatoriais por ano. “Não é um trabalho fácil de manter. Ano passado tivemos prejuízo de R$ 11 milhões. Mas é uma causa nobre, que não pode parar. Por isso as doações são essenciais”, diz Sérgio Lopes, assessor corporativo da OSID. “A obra de Irmã Dulce já pode ser considerada um milagre. Ela deixou um legado de fé, persistência e amor em servir ao próximo.”
E não é para menos. Segundo Lopes, 2.000 pessoas são atendidas, por dia, no Hospital Santo Antônio, fundado pela beata em um galinheiro (leia mais abaixo). O local dispõe de 954 leitos em Salvador. Mais de 11,5 mil pessoas são atendidas por mês para tratamento de câncer, além de outros serviços.
A biografia
Irmã Dulce, que será consagrada como a Santa dos Pobres, era uma mulher a frente de seu tempo. Como religiosa, enfrentou punições por não obedecer rígidas regras da congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus, onde se tornou freira em 13 de agosto de 1933 (dia da Bem-Aventurada Dulce dos Pobres), quando recebeu seu primeiro hábito e adotou o nome da mãe, Dulce, que a faria conhecida no país.
Rita de Sousa Brito Lopes Pontes, seu nome de batismo, nasceu em Salvador, na Bahia, em 26 de maio de 1914. Era de classe média alta. Seu pai, Augusto Lopes Pontes, era dentista. Ela se tornou louca por futebol, paixão herdada do pai e do irmão mais velho, e tinha no Ypiranga seu time do coração nos anos 1920.
Mas nem tudo na vida de Rita era alegria. Aos 7 anos, ela perdeu a mãe, Dulce, que sangrou até morrer durante o parto. Ao se tornar freira, passou a ajudar doentes, mas ela mesmo sofria com grave enfisema pulmonar e chegou a pesar 38 quilos. Para pagar promessa, pela recuperação de uma de suas irmãs, dormiu por 30 anos em uma cadeira.
Essas e outras histórias da primeira santa do Brasil são detalhadas na biografia “Irmã Dulce, a Santa dos Pobres” (editora Planeta), de Graciliano Rocha. “Ela já tinha sido canonizada no coração dos brasileiros quando o Vaticano reconheceu o segundo milagre em maio deste ano”, afirma o autor que pesquisou a vida da religiosa por oito anos.
Rocha lembra que foi ao longo dos anos 1940 que a obra de Irmã Dulce teve início. “Ela invadia casas abandonadas para abrigar os enfermos e fazia atendimentos de forma precária. Em 1949, ela pediu à madre superiora autorização para abrigar seus doentes no galinheiro ao lado do convento. Ela não recusava doentes e sua fama cresceu. Ali nasceu um dos maiores complexos hospitalares do país”, diz. “Temos que lembrar que ela fez isso em uma época em que o SUS (Sistema Único de Saúde) ainda não existia.”
Irmã Dulce soube aproveitar da credibilidade conquistada e pediu ajuda a poderosos políticos, como o governador baiano Antônio Carlos Magalhães e aos presidentes Eurico Gaspar Dutra, João Goulart, João Figueiredo e José Sarney,. Esse último concedeu a ela o número da linha direta a seu gabinete. “Poucas pessoas tinham acesso, mas ela usou poucas vezes”, diz o escritor. “Ela estava em um mundo dominado por homens, mas não se deixou dominar”, finaliza Rocha.
Primeiro Milagre
A técnica administrativa Cláudia Cristina Santos Araújo, 50 anos, afirma que deve sua vida à Irmã Dulce. Assim como a mãe da beata, Cláudia sangrou por horas após o parto do filho Gabriel, hoje com 18 anos.
“Comecei a sentir as contrações e fui para a maternidade, em Itabaiana [em Sergipe]. Era época de eliminatórias da Copa do Mundo e eu estava deitada em uma maca. Uma pessoa de verde se aproximou e eu apaguei”, conta.
A história do que passou a seguir Cláudia só descobriu dias depois, no retorno com o médico. “Fui anestesiada para ter o nenê. Depois, comecei a sangrar sem parar. Os médicos faziam transfusão e, mesmo assim, o sangue escorria, não coagulava. Fizeram três cirurgias, inclusive a retirada do útero, e não estancava a hemorragia. Fui desenganada e o médico não queria me transferir para Aracaju, afirmou que eu não aguentaria, não sobreviveria.”
O médico, segundo ela, anunciou à família que tinha feito de tudo e ela só seria salva por um milagre. Os parentes, então, chamaram um padre que, ao invés de fazer a extrema-unção, incentivou uma rede de oração pedindo a intercessão de Irmã Dulce.
Já no hospital de Aracaju, Cláudia despertou e viu um vulto branco. “Era a enfermeira. Perguntei se tinha ganhado o nenê e ela disse que ele era lindo. Ela foi avisar ao médico, que descansava em outra sala. Ele pensou que ela ia anunciar minha morte, mas avisou que eu havia acordado.
A partir daí, melhorei.” Cláudia, então, passou a ser devota de Irmã Dulce. “Hoje ela representa tudo para mim, amor, carinho e humildade.”
Esse foi o primeiro milagre de Irmã Dulce reconhecido pelo Vaticano e que deu seguimento ao processo de canonização.
Segundo milagre
O músico e maestro José Maurício Bragança Moreira, 51 anos, cresceu em Salvador e, em várias ocasiões, cruzou com Irmã Dulce. “Via ela na rua, pedindo esmola. Ela era persistente. Quando eu e meus amigos a encontrávamos, queríamos tocar nela porque ela tinha uma divindade”, afirma. Moreira conta que sua família sempre foi devota da beata. “Meu pai doava a ela material de construção, meu avó material do armarinho dele.”
Moreira tinha apenas 23 anos quando soube que perderia a visão, por conta de um glaucoma agressivo. “Foi no mesmo ano da morte da Irmã Dulce. Fiquei arrasado.”Moreira conta que seguiu o tratamento por quase dez anos, até ficar completamente cego, em 2000. Ele era técnico em informática e teve que mudar de profissão. “A música já estava na família, aí estudei música em braile, aprendi a andar de muleta e só um ano depois consegui sair de casa sozinho.”
Já como maestro, Moreira conheceu sua mulher, Marize Araújo, hoje com 54 anos. Eles se mudaram para Recife (PE). Moreira conta que um dia, em 2014, acordou com uma conjuntivite muito dolorida. “Tive uma noite difícil. Peguei uma imagem da Irmã Dulce, herança da minha mãe, esfreguei nos olhos e pedi apenas para a dor passar. Logo me deu sono e, quando acordei, enxerguei minha mão. Liguei para minha mulher voltar e, quando ela abriu a porta, a beijei e disse: ‘você é muito linda’. Começamos a chorar.”
A cura de Moreira foi o segundo milagre reconhecido pelo Vaticano e que completa o processo para canonizar Irmã Dulce.
Canonização na TV
A canonização de Irmã Dulce será a terceira mais rápida da era moderna: 27 anos de espera desde a morte em 13 de março de 1992, atrás do papa João Paulo 2º (nove anos) e de Madre Teresa de Calcutá (19 anos).
A cerimônia do próximo domingo será transmitida ao vivo na TV: pela TV Aparecida, das 5h15 às 7h; pela Globo, das 5h às 6h45; e pela GloboNews, das 4h30 às 9h.
A padroeira do Brasil
Com uma história de mais de três séculos no Brasil, Nossa Senhora Aparecida continua sendo a santa mais popular e aclamada do país. E não faltam histórias de devotos que foram agraciados pela Santinha.
A dona de casa Glória Maria Balbino da Silva, 70 anos, conta que quase morreu ao parir sua única filha, há 42 anos. “Desmaiei durante o parto, o bebê não conseguia sair e corria risco de vida. Mesmo fraca, no meio daquela tensão toda, eu consegui ter forças para pedir à Nossa Senhora Aparecida que a criança, que eu nem sabia o sexo, nascesse com saúde. Me deram anestesia geral e usaram o fórceps”, conta Glória.
Uma menina saudável nasceu, e Silva decidiu dar à filha o nome de Elaine Aparecida da Silva, em agradecimento à Padroeira do Brasil —conhecida também como protetora das grávidas e dos recém-nascidos—, santa celebrada no próximo sábado, feriado de 12 de outubro.
“Desde então vamos todos os anos para a basílica de Aparecida, agradecer por esse dia e pela vida”, conta Elaine, que hoje é advogada e vive no Itaim Paulista (zona leste). “Outra intercessão da Santinha foi quando fui curada de convulsões inexplicáveis que tive por cinco anos. Minha mãe pediu ajuda à Aparecida, e eu me curei. Ela sempre nos escuta”, agradece a filha.
O cirurgião dentista Luiz Renato de Melo Calças Paz, 43 anos, também se emociona ao contar sua história. “Sempre fui devoto de Nossa Senhora da Conceição Aparecida do Brasil. Lembro, desde pequeno, de minha bisavó ouvindo a rádio Aparecida. Naquela época, às 18h, o papa rezava o Pai Nosso em latim”, conta ele, que há cinco anos tem uma tatuagem da santa no braço.
Paz afirma que não teve uma grande graça alcançada, mas sim diversas pequenas graças, todos os dias. “Para agradecer, faço duas peregrinações por ano até a basílica em Aparecida”, conta ele, que vive na capital paulista. “Em uma delas, a caminhada pela fé, saímos de São Paulo na Quarta-feira Santa, pela via Dutra. Chegamos no Sábado de Aleluia, uma noite antes do lava-pés. É um grupo de umas 40 pessoas, e até idosos e pessoas fora de forma completam o caminho. É inexplicável, contra a razão, contra a ciência. Mesmo destroçados, caminharíamos mais dias.”
Há 302 anos, uma imagem atribuída à portuguesa Nossa Senhora da Conceição foi encontrada no rio Paraíba do Sul, em Guaratinguetá, por três pescadores. A imagem ganhou um altar e passou a ser chamada de Aparecida devido à sua misteriosa aparição no rio —de acordo com informações do Santuário Nacional, a imagem é, originalmente, uma representação de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Portugal.
A região de Guaratinguetá onde a santa foi encontrada foi batizada de Aparecida, que se tornou um município independente e hoje abriga a basílica.
Nos anos seguintes ao encontro da imagem, a Santinha ganhou devotos nobres, entre eles a princesa Isabel e o marido dela, o conde d’Eu. Após quatro anos de união e dificuldades para gerar um filho, o casal avistou a Padroeira do Brasil pela primeira vez.
Passados 17 anos e com três filhos, o casal fez uma segunda visita à santa e, em agradecimento, a princesa doou a coroa de ouro cravejada de diamantes e o manto azul que até hoje vestem a Santinha. Foi então que Nossa Senhora passou a ser conhecida também como a Padroeira das grávidas e dos recém-nascidos.
Disco batizado
Devota de Nossa Senhora Aparecida desde criança por influência da família, a cantora e educadora musical Miriam Maria, que prefere não revelar a idade, diz ter uma relação profunda com a santa.
“Após 12 anos produzindo meu disco, na reta final eu não achava um nome que fizesse sentido com a obra. Em 2016, decidi fazer uma caminhada de Minas Gerais até Aparecida, andando de 10 a 12 horas por dia, e pedi uma ajuda a ela, uma inspiração. Nada aconteceu. Quando cheguei em casa, um amigo me mandou uma mensagem e, dali, surgiu o nome que eu precisava, “Rama”, que tem a ver com flores e com meu disco anterior”, conta.
Profunda também é a relação da família de Miriam com Aparecida —com a santa e também com a cidade. Izidro de Oliveira Santos, tio dela por parte de mãe, era padre e, nos anos 1970, tornou-se reitor do Santuário Nacional, cargo que ocupou até 1979.
Um ano antes de deixar do posto, em 1978, houve um atentado contra a imagem de Nossa Senhora Aparecida: um homem a tomou da igreja antiga, saiu correndo e acabou derrubando a santa, que foi quebrada em 165 pedaços.
Ficou a cargo da artista plástica Maria Helena Chartuni, à época chefe do Departamento de Restauração do Masp, recuperar a imagem.
“Depois que o trabalho ficou pronto, a Santinha foi levada para Aparecida. A primeira pessoa que a recebeu em mãos foi meu tio Izidro. É muito emocionante saber que minha família faz parte dessa história”, diz Miriam.