Mulheres superam dificuldades ao volante de ônibus da capital
Machismo, preconceito e até falta de banheiro em terminais são alguns dos problemas enfrentados
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A realização de um sonho, muitas vezes de criança, leva mulheres a enfrentarem o machismo e o preconceito que envolve uma profissão considerada essencialmente masculina para se tornarem motoristas de ônibus em uma cidade de trânsito caótico como São Paulo.
Os desafios são muitos, a começar de ter de conciliar a vida familiar, como cuidar da casa e dos filhos, com uma rotina estressante de trabalho, com longas jornadas, muitas vezes em horários atípicos.
Sem falar em restrições que podem afetar a saúde da mulher, como a falta de higiene em banheiros de terminais ou até mesmo a falta do próprio banheiro, como por vezes ocorre em pontos finais de ônibus de bairros mais distantes.
Esses problemas foram observados pela psicóloga Tássia Bertoncini de Almeida, que acompanhou mulheres motoristas de ônibus em seus trabalhos para a elaboração de um mestrado apresentado ao Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo) em 2018.
“Eu acompanhei algumas linhas que acabam no bairro, no meio do nada. Não tem nada: ou é banheiro químico ou ela tem de contar com a boa vontade dos comércios da região. E também tem a questão da menstruação. Não tem o que fazer nessa situação. Tem que ter banheiro. Por isso, algumas mulheres tomam anticoncepcional direto para eliminar esta questão”, revela Tássia.
Apesar disso, elas não pensam duas vezes diante da oportunidade de sentar na direção de um coletivo. “Eu tinha um sonho, sempre gostei de dirigir. Eu já tinha certeza do que eu queria”, afirma Ruthleia Eva de Carvalho, de 36 anos e motorista de uma viação da zona sul há nove meses. Até 2015, Ruthleia nem carteira de habilitação tinha.
O mesmo sonho era compartilhado por Bruna Copari, 25 anos, que trocou o cargo de fiscal de linha na viação na qual trabalha pelo de motorista. “É um sonho de criança. Meu pai era motorista de guincho, já tinha isso no sangue. É uma experiência muito boa.”
Ireni Rosa de Paula, de 50 anos e 13 de experiência como motorista, fala em “aprendizado de vida”. “Cresci muito como pessoa, cresci muito moralmente, emocionalmente desde que me tornei motorista.”
Segundo a SPTrans, o sistema de transporte por ônibus de São Paulo conta com 32.820 motoristas, dentre os quais 665 mulheres —ou seja, meros 2% do total.
Sobre os sanitários, a SPTrans afirma que as empresas devem adequar as condições dos pontos de controle às necessidades de seu quadro funcional.
Vaidade também faz parte do dia a dia para tudo ficar ‘bem feminino’
Da cadeira de cobradora, Cleusa Gonçalves da Silva, 51 anos, entre um e outro passageiro que rodava a catraca a sua frente, sonhava um dia trocar pela do motorista.
Quatro anos depois, Cleusa não só pulou para o assento principal do ônibus como o cobriu com uma capa vermelha recheada de florzinhas. O protetor do cinto de segurança também seguiu a mesma cor.
“Tudo bem feminino”, diz Cleusa, que há um ano pilota um dos ônibus de 13 metros da Viação Santa Brígida. Dos 1.593 motoristas da empresa, ela é uma das 26 mulheres na função.
Cleusa trabalha com uma mulher cobradora. Diariamente, a dupla faz quatro viagens do Terminal Pirituba (zona oeste) até a praça Ramos de Azevedo (centro). O trajeto, segundo a comandante, dá cerca de uma hora, a depender do trânsito.
Vaidosa, a motorista, que pega no batente às 5h45 da manhã, não dispensa a unha feita, cílios postiços e batom. “A gente tem de ficar bonita”, aponta.
Cleusa é casada pela segunda vez, com marido motorista. Tem dois filhos, e o neto Miguel, 6 anos. “Meu gato”, diz, a avó coruja.
Preconceito das passageiras acaba sendo maior, diz condutora
Machismo, preconceito, assédio, gracejos irônicos e piadinhas costumam fazer parte da rotina das mulheres que dirigem ônibus pelas ruas da cidade. O mais difícil, porém, é quando vêm das próprias mulheres.
“No terminal, uma mulher parou na porta ao me ver e falou: ‘Com mulher dirigindo eu não vou’. E não entrou no ônibus. Fiquei muito chateada, triste. É uma reação que eu esperava de um homem”, conta Bruna Copari.
Sua colega de profissão, Ruthleia Carvalho, viveu experiência semelhante. “Uma mulher disse que não ia entrar no ônibus quando me viu. O preconceito é maior por parte das mulheres. Em contrapartida, tem muito homem que fala assim: ‘Vou nesse só porque é mulher’, em tom de piadinha, de ironia. Ao descerem de ônibus, elogiam a maneira como eu dirigi, que eu sou muito cuidadosa. É muito gratifcante para a gente. É vida que a gente carrega”, diz.
Ireni Rosa de Paula, que começou a dirigir ônibus em 2007, diz que foi muito difícil no começo. “Creio que hoje em dia a situação está muito melhor para as mulheres que estão começando”, afirma.
Trabalho deixa profissionais mais brutas
A psicóloga Tássia Bertoncini de Almeida, em sua dissertação “O Desgaste Mental de Motoristas de Ônibus: Um Recorte de Gênero”, de 2018, buscou fazer um estudo aprofundado do impacto na saúde da mulher o trabalho de motorista de ônibus .
“É um trabalho pensado para homens. E aí eu imaginava que pelo fato de ser pensado para homens teria um impacto ainda maior do que seria nessa relação das mulheres nesse trabalho.”
A principal conclusão é a de que as próprias mulheres acreditam que passaram por um processo de embrutecimento na função.
“O fato de elas se enxergarem desta maneira, de elas entenderem que elas tiveram de ficar mais duras, falar palavrão, foi algo que foi meio imposto pelo que é o trabalho, que é estar no trânsito, pela relação com os outros motoristas, com os passageiros, com o próprio trabalho em si.”