Sem trabalho na pandemia de Covid, paulistanos acabam se tornando sem-teto

Com a crise, trabalhadores demitidos não encontram outra solução a não ser ir para a rua

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São Paulo

Além das milhares de mortes e dos efeitos trágicos na saúde da população, a pandemia do coronavírus também tem jogado nas ruas pessoas que perderam emprego e renda nos últimos meses. Sem grana para bancar o aluguel, a única opção que resta para parte vulnerável da população é viver sem teto sobre as calçadas da capital paulista.

Segundo religiosos e agentes sociais e de saúde que trabalham diretamente com a população em situação de rua, o cenário mais comum é o homem, perdendo emprego e renda, se distanciar da mulher e dos filhos, passando a viver como sem teto.

Cícero Rodrigues de Lima viveu por dois meses em situação de rua e, nesta semana, conseguiu um emprego na UBS Parque São Rafael, na zona leste de São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress

O enfermeiro Cícero Rodrigues de Lima, 49 anos, sabe bem o que é isso, vivendo os dois lados dessa mesma situação. Foi agente de saúde de 2011 a 2016, trabalhando na região central de São Paulo. Em meio a esse período, fez a faculdade de enfermagem, ganhou destaque e acabou promovido, participando do desafio Mais Saúde na Cidade por uma organização social.

Neste ano, já sem o emprego na OS, trabalhava informalmente em uma empresa de vacinas, quando, em maio, foi dispensado. A falta de renda e o consequente ambiente familiar conturbado acabaram levando o profissional a viver por dois meses em um alojamento emergencial na Mooca (zona leste). “Senti as costas do sistema, que não via em mim o profissional que eu sou. É algo que aborta sonhos, planos, carreira e profissão”, conta.

Foi uma conversa com o padre Júlio Lancellotti que o levou a retomar a confiança em si mesmo para seguir em frente. O religioso o ajudou a encontrar uma recolocação profissional e, após testes e entrevistas, Lima voltou a trabalhar nesta semana como enfermeiro em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) do extremo da zona leste. Pai de dois filhos, um de 22 e outro de 13, o cearense radicado em São Paulo se sentiu novamente valorizado. Com emprego garantido, passou o almoço do Dia dos Pais com o mais velho.

O salário de Lima é compatível com a sua formação e a sua esperança agora é de que seu exemplo motive outras pessoas que, diante da crise, acabaram em situação de rua. “Sou uma história viva, perambulando pela cidade”, diz.

Motorista busca ajuda em tenda de freis

A vida parecia retomar o curso natural neste ano, com renda e moradia garantidos, quando veio o coronavírus e o mundo do motorista de aplicativo Marcelo Luiz Borba, 47 anos, desabou. Restou a rua e a solidariedade dos freis do Largo São Francisco (região central), que têm colaborado com ele dentro do possível.

O ex-motorista de aplicativo Marcelo Borba vive atualmente no Largo São Francisco; ele perdeu renda e moradia em março por causa da pandemia - Rubens Cavallari/Folhapress

Borba já havia vivido por dois meses na rua anteriormente, por causa das drogas. Mas recebeu uma ajuda da família para encontrar o quarto onde morou até março e a alugar o carro com o qual começou a trabalhar. Mas veio a pandemia. “Segurei por um mês ainda, no começo. Consegui pagar o aluguel do quarto e do carro. Depois, não conseguia mais pagar nada e tive a necessidade de ir para a rua”, diz. “Eu estava começando a me estabilizar, a entrar no rumo.”

O motorista de aplicativo estava nas ruas da Penha (zona leste), mas tinha necessidade de comer e tomar banho e por lá não havia como. “Fiquei sabendo da tenda e me instalei por aqui mesmo [Largo São Francisco]”, diz.

Tem medo de contrair o coronavírus, mas espera escapar ileso. Borba também conta que, durante todo o período na rua, não voltou a usar drogas. Foi a forma de se manter saudável e com boa imunidade. “Eu consegui parar durante esse tempo aqui, mesmo perto de tudo”, diz.

Apesar do momento difícil, o motorista se mostra esperançoso na vida. Feliz com a conquista do Palmeiras no Campeonato Paulista, Borba quer que a situação se normalize logo para reatar com a vida, mas dessa vez ao lado dos três filhos e da ex-mulher. “Tenho planos e quero concluí-los”, diz.

Padre Júlio Lancellotti diz que situação atual é crítica

Representante da Pastoral do Povo de Rua, padre Júlio Lancellotti conhece há décadas a realidade dos excluídos e diz que nunca viu uma situação tão crítica quanto a atual. “Nesse nível, não tinha visto ainda. É uma movimentação maior do que a das grandes migrações”, afirma.

O padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, afirma que nunca a situação dos moradores de rua esteve tão crítica como durante a quarentena - Rubens Cavallari - 25.mai.20/Folhapress

​Segundo o padre, antes mesmo do coronavírus as pessoas já estavam desesperadas por causa da crise econômica e do desemprego. “É uma situação que só se agrava, só aumenta. Porque as possibilidades são cada vez menores e vão rareando. É muito difícil para a população sair disso”, explica.

O padre lembra também que os governantes não têm feito o suficiente para diminuir o desconforto de quem se vê sem emprego e sem moradia nas ruas da cidade. “As respostas do poder público são muito tímidas. Sempre se diz que faz o que é possível, mas nunca esse possível é aquilo que as pessoas de fato necessitam”, afirma.

Para minimizar os traumas causados pela pandemia na região central da capital paulista, a Igreja tem atuado como referência para a população em situação de rua. No Largo São Francisco, os religiosos distribuem alimentos e têm, também, estabelecido laços de companheirismo. No domingo retrasado (9), para celebrar o Dia dos Pais, as pessoas foram, inclusive, convidadas a escrever mensagens em um grande mural. Muitos deixaram recados para os filhos, que estão distantes.

Prefeitura afirma manter 25 equipes assistenciais

A prefeitura afirma que, de abril a julho, 286 pessoas em situação de rua foram diagnosticadas com a Covid-19 e acompanhadas pelas equipes do Consultório na Rua e Redenção. Destas, 28 que estavam hospitalizadas foram a óbito.

Segundo a prefeitura, o Programa Consultório na Rua foi ampliado, aumentando de 18 para 25 o número de equipes. Cada equipe possui enfermeiros, assistente social, psicólogo, médico, atendente administrativo, agentes sociais e agentes de saúde.

As equipes estão distribuídas nas seis Coordenadorias Regionais de Saúde, além de oito equipes Redenção na Rua. “O atendimento consiste em consulta médica, visita de rua com atendimento do médico, consulta de enfermagem, visita de rua com atendimento de enfermagem, visita do auxiliar ou técnico de enfermagem e visita de rua do agente de saúde”, diz, em nota.

De acordo com levantamento de 2019, 24.344 pessoas estão em situação de rua na capital paulista. Segundo a gestão Bruno Covas (PSDB), são 11.693 acolhidos nos serviços da rede socioassistencial e 12.651, de fato, nas ruas.

A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social afirma que criou 1.222 novas vagas para acolhimento de pessoas em situação de rua, sendo 672 em oito equipamentos emergenciais em centros esportivos, outras 400 em quatro CEU (Centros Educacionais Unificados) e 150 vagas para hospedagem de idosos já acolhidos na rede socioassistencial, em três hotéis na região central da cidade.

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