A lentidão com que caminhões e veículos de passeio sobem durante o dia pela mão única da avenida Narain Singh, em Guarulhos (Grande SP), contrasta com a altíssima velocidade de carros envenenados que tiram racha na mesma via quando escurece, como ocorreu no início da madrugada de sábado (13). O Agora flagrou seis corridas clandestinas entre a 1h10 e a 1h50, no bairro Jardim Aracília, onde se concentram muitas empresas e indústrias.

Já no início da avenida, ao lado de um ponto de ônibus, uma linha desenhada com tinta branca indica que o local é usado para largada das corridas ilegais. “Faz uns dois anos que esse povo acelera por aqui”, afirmou o porteiro de uma empresa, em condição de anonimato, que trabalha na região há cerca de dez anos. O tempo em que os rachas ocorrem coincide com o recapeamento da via, iniciado em setembro de 2018, segundo o governo municipal.

Por volta das 21h40 de sexta-feira (12), um Chevolet Monza, rebaixado e com um forte ronco de motor, estava ao lado do ponto de ônibus. O veículo, porém, permaneceu pouco tempo na área, acelerando sozinho pela avenida, que conta com velocidade máxima de 50 km/h, de acordo com a Prefeitura de Guarulhos, gestão Gustavo Henric Costa (PSD), o "Guti".

Ainda segundo o porteiro, alguns “rachadores” chegam mais cedo ao local, como o condutor do Monza, para verificar “as condições da pista” e constatar a diminuição do tráfego de veículos convencionais.

Cerca de 50 minutos depois, a chuva caiu sobre a região, molhando o asfalto por aproximadamente meia hora. Mas nem isso afastou alguns motoristas de carros envenenados.

Diferentemente deste fim de semana, em que choveu, a avenida costuma encher de rachadores e conta até com plateia em dias secos, conforme afirmado à reportagem por dois funcionários da região. Um vídeo, feito durante uma corrida clandestina, supostamente em julho do ano passado, também mostra a plateia dos pegas.

Por volta da meia-noite, o Monza visto horas antes, assim como um Chevrolet Chevette, além de Volkswagen Voyage e Passat, todos de modelos fora de linha, mas equipados, começaram a acelerar sozinhos pela avenida, até que ela ficasse menos molhada e também para aquecer os pneus, como em uma corrida convencional.

Outro funcionário da região afirmou, também em condição de anonimato, temer por sua vida e pela dos seus colegas de trabalho. Segundo ele, houve um acidente no último dia 8, em que um Volkswagen Fusca teria batido contra um poste. “Hoje foi o poste, mas amanhã pode ser eu”, afirmou.

O homem acrescentou que um guincho, que costuma ser levado pelos pilotos clandestinos ao local, é supostamente usado após acidentes para evitar flagrantes com a polícia, como teria ocorrido ainda no dia 8.

A Prefeitura de Guarulhos afirmou que, em parceria com a PRF (Polícia Rodoviária Federal), registrou 27 autos de infração de trânsito e apreendeu sete veículos, supostamente envolvidos em rachas na avenida Narain Singh, entre julho do ano passado e janeiro deste ano. A PRF confirma o apoio dado nas ações.

Pista de corrida

O vereador Marcos Cannor (PSL), de Santa Isabel (Grande SP), afirmou ao Agora, por mensagem de texto, já ter acelerado na avenida do Jardim Aracília, em julho do ano passado, quando ainda não havia entrado na política.

A corrida entre seu Volkswagen Fusca e outro veículo, ambos aparentemente mexidos, foi registrada por mais de um celular. “Já participei de testes e acertos do carro no lugar citado em julho de 2020, por isso tem vídeos meus lá”, afirmou.

Segundo as imagens, o Fusca chega a levantar a dianteira, em decorrência da força de sua arrancada.

Cannor se envolveu em um acidente, com o Fusca que aparece nas imagens, na noite do mesmo último dia 8, quebrando os dois pés, como foi afirmado pelo próprio político à reportagem.

Ele acrescentou, no entanto, que a colisão ocorreu em uma pista particular de Mairiporã (Grande SP), sem dar o endereço e nome do local. O vereador permanece internado e estável, em um hospital particular de Guarulhos.

Uma foto feita por uma pessoa que estava ainda no dia 8, e que foi parar na internet, mostra um carro semelhante ao parlamentar batido em um poste, na avenida Narain Singh, apesar de dizer ter sofrido um acidente com o carro no mesmo dia em outra cidade. Nenhuma ocorrência de acidente, porém, foi registrada pelas polícias Militar e Civil.

Em entrevista ao jornal Ouvidor, publicada neste sábado (13), Cannor afirmou que o guincho que supostamente rebocou o Fusca, em Mairiporã, parou em Guarulhos para socorrer outro veículo, acidentado na avenida do Jardim Aracília.

“Para conseguir colocar o carro deste amigo em seu guincho e levá-lo numa oficina ali no mesmo bairro, ele [motorista do guincho] teve que deixar o meu Fusca na avenida Narain Singh”, argumentou.

"Quem me conhece sabe que sou um fã e adepto do esporte, por isso tenho carros totalmente equipados e seguros, se fosse em outro veículo, sem as devidas adaptações de segurança, provavelmente não teria sobrevivido", diz trecho de nota, encaminhada por seu gabinete.

Polícia precisa monitorar, afirmam especialistas

Sérgio Ejzenberg , Engenheiro e mestre em transportes pela Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo) , afirmou que as corridas clandestinas, realizadas em vias públicas, “são rechaçados pela sociedade”. “Quando as autoridades responsáveis não coíbem isso, digamos, é um problema grave também, porque essa omissão é criminosa”, afirmou.

A consequência das eventuais omissões de fiscalização e investigação podem repercutir na vida de pessoas que não estão envolvidas nos rachas, mas podem ser impactadas pelas corridas ilegais, em eventuais acidentes de trânsito. “É importante a polícia fazer rondas [para inibir], pois os rachas implicam em um risco gravíssimo à sociedade”, acrescentou o especialista.

Rosan Coimbra, presidente da Comissão de Trânsito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, também disse que, por se tratar de um crime, os rachas precisam ser monitorados pelos setores de inteligência das polícias Civil e Militar.

“Com isso, pode-se fazer um ‘pente fino’ em todos veículos [suspeitos], ver a situação dos carros, em sua maioria alterados justamente para participar de rachas. Fora isso, da mesma forma que a reportagem constatou [as corridas clandestinas], a polícia também pode identificar quem são os participantes, com as placas dos veículos, e os intimar para esclarecimentos e eventuais indiciamentos.”

Respostas

A Prefeitura de Guarulhos, gestão Gustavo Henric Costa (PSD), afirmou que o limite de velocidade na avenida Narain Singh, onde a reportagem flagrou rachas, é de 50 km/h. "Já está sendo providenciada a colocação da sinalização de velocidade, bem como de lombadas no local."

Pelo fato de a avenida estar perto da rodovia Presidente Dutra, que é federal, a GCM (Guarda Civil Municipal), em parceria com a PRF (Polícia Rodoviária Federal), realizou oito operações na via, entre 1º de julho do ano passado e 15 de janeiro deste ano, segundo a prefeitura. As ações, acrescentou a gestão Guti, resultaram na apreensão de sete veículos e na aplicação de 27 autos de infração de trânsito.

A Polícia Militar afirmou atuar "de forma ostensiva e preventiva" para coibir rachas na região de Guarulhos. "A Corporação realiza fiscalizações de trânsito com base em informações obtidas pelo serviço de inteligência policial, embasado em monitoramento de redes sociais e denúncias específicas, que podem ser feitas através do 181 ou 190", diz trecho de nota.

O Comando de Policiamento de Trânsito afirmou que, em 2020, apreendeu 20.698 veículos na cidade, além de elaborar 608.975 autuações de trânsito. A corporação, porém, não deu números sobre ocorrências registradas na avenida Narain Singh.

Já o 4º DP de Guarulhos, responsável pela região onde ocorrem as corridas clandestinas, afirmou não ter localizado investigações em andamento "com base nas informações passadas pela reportagem". "A unidade está a disposição de possíveis vítimas para a elaboração do boletim de ocorrência e prosseguimento na apuração das denúncias", afirma trecho de nota.