Cozinhas fantasma se espalham por São Paulo durante a pandemia
Comidas de restaurantes e lanchonetes são preparadas em galpões compartilhados e incomodam a vizinhança
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O cliente pode não saber, mas o lanche que chega em casa após um pedido pela internet muitas vezes vem de um negócio em expansão que já chama a atenção na capital paulista —e não apenas pela comida, mas, em alguns casos, por incomodar vizinhos. São as dark kitchens, ou “cozinhas fantasmas”, onde não se pode comprar nada presencialmente. Segundo o Procon, o consumidor corre o risco de levar “gato por lebre”.
Elas funcionam em galpões administrados por empresas e que normalmente reúnem várias cozinhas juntas, que pagam um aluguel pelo espaço.
As dark kitchens se tornaram atraentes no delivery porque conseguem ampliar a área de atuação dos restaurantes em aplicativos.
Uma lanchonete badalada que só atenderia em Pinheiros (zona oeste), por exemplo, pode ter uma “cozinha fantasma” na zona leste e, com isso, diminuir o tempo para levar um hambúrguer no agora vizinho Tatuapé. Ela entra no “radar” de quem mora no bairro distante do restaurante físico, aquele onde o cliente paga caro e até vê a comida sendo preparada.
Em alguns casos, o dono do restaurante conhecido e o da dark kitchen nem são os mesmos. O responsável pela “fantasma” paga até 8% do faturamento como royalties para usar a marca do famoso. E prepara o lanche em um cubículo, num galpão onde pode ser feita de comida vegana à japonesa. Na teoria, tem que cumprir requisitos de qualidade. Na prática, segundo empresários e funcionários, nem sempre isso acontece. O consumidor pode pagar caro só pela embalagem.
A reportagem foi a oito endereços que servem de dark kitchens. A prefeitura disse que três foram notificados para que regularizarem a situação —dois, nas ruas Cação, no Itaim Bibi, e Fradique Coutinho (Pinheiros), zona oeste, não tinham nem licença de funcionamento. Outros dois locais seriam vistoriados pelas subprefeituras da Sé (região central) e da Mooca (zona leste) nos próximos dias.
Informado sobre essa atividade, o diretor-executivo do Procon-SP, Fernando Capez, disse que é “assustador”, porque o consumidor tem como referência a higiene do estabelecimento e da cozinha na qual imagina estar fazendo o pedido. “Claramente, uma prática abusiva”, diz.
Segundo Capez, o artigo 31 do Código de Defesa do Consumidor é suficiente para perceber o problema. “Tem que dizer: ‘esse produto está sendo elaborado fora do estabelecimento, nas seguintes condições’. Se não fizer isso, está, usando a linguagem popular, vendendo gato por lebre.”
O diretor do Procon detalha aquilo que vê como uma irregularidade. “Tenho o local onde vou, com uma identidade visual, uma confiança, onde conheço todas as condições de higiene e funcionamento. De repente, está sendo fornecido em um endereço completamente diferente, do qual não tenho informação sobre as condições de produção, acondicionamento, manutenção e higiene”, explica.
Professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e especialista em vigilância sanitária, Fernando Aith cita, entre outras coisas, a responsabilidade de quem aluga essas várias cozinhas em um único galpão em declarar o que de fato acontece lá. "[Pode haver] desvio de finalidade comercial, o que é uma burla ao controle do estado, relacionado à proteção do consumidor", afirma.
Vizinhos encaram ‘combo’ de transtornos
Barulho, fumaça, cheiro de fritura, aglomeração de entregadores e transtornos no trânsito local. É evidente que um combo com tantos problemas não passaria despercebido pelos vizinhos de unidades paulistanas da Kitchen Central, empresa que chega a contar com mais de 30 cozinhas para delivery em um único galpão. Detalhe é que a gigante do setor, turbinada por grana de megainvestidores como o venezuelano Jorge Pilo, traz em sua classificação de atividade econômica “aluguel de imóveis próprios” -e nada relacionado à produção de comida.
Vizinhos da unidade da rua Clélia, na Lapa (zona oeste), chegaram a participar de reunião com o subprefeito e o próprio Pilo para chegar a um acordo. Cerca de nove meses depois, a situação segue insustentável, como conta quem vive no local. “A gente tem, ininterruptamente, um barulho como se fosse um aspirador de pó ligado no nosso ouvido”, afirma a assessora de comunicação Mariana Paker, 39 anos, que vive em um terreno que está com a sua família há mais de 100 anos. “Não consigo morar na minha casa”, conta.
Mariana explica também que a operação das cozinhas vara madrugada adentro. "Vão até o último cliente. Se quiser fechar às 6h, vão até as 6h. Geralmente, até as 2h", diz. A assessora de comunicação conta que os problemas começaram ainda na construção da dark kitchen, quando os horários já eram completamente desrespeitados. "Eles entram no meio dos bairros, porque a premissa é essa para as entregas serem mais rápidas", diz.
“Todo dia parece uma pastelaria, uma hamburgueria, dentro de casa”, afirma o relações públicas, Phil Mindlin, 45, que vive em prédio ao lado da Kitchen Central da rua Guararapes, no Brooklin (zona sul). “Os peritos com que a gente conversou dizem que isso é uma indústria”, conta. "Não tem como inibir o cheiro e a poluição de 30 cozinhas. O nosso prédio é colado, muro com muro", completa.
Também vizinha da unidade do Brooklin, a administradora Lucia Barros, 52, diz que o cheiro é insuportável e a louça da sua própria casa chega a ficar engordurada, mas há algo ainda pior. "O barulho é o que mais me incomoda. Chega a doer os tímpanos. De domingo para segunda, eu não consigo dormir. Eles têm uma cozinha que vai até as 3h ou mais. A exaustão fica ligada o tempo inteiro", relata. "Moro no 7º andar e escuto a campainha chamando os pedidos", diz.
Vizinha da unidade da rua do Acre, na Mooca (zona leste), a professora Ruth Izzo Lorente, 66, diz que o barulho repetitivo é perturbante, mas não o único problema. “Não tenho como deixar a janela aberta. Vem uma poeira engordurada e o cheiro enjoa”, diz. A professora diz também que os entregadores circulam pela contramão, inclusive sobre as calçadas. “Os motoqueiros vêm em cima e ainda te xingam”, conta.
Prefeitura autua dois galpões na zona oeste
A Prefeitura de São Paulo afirmou que os Hub da Rappi, administrados pela Smartkitchens, localizados nas ruas Cação e Fradique Coutinho, na região da subprefeitura de Pinheiros (zona oeste), não têm licença de funcionamento. “Os locais foram autuados e têm, respectivamente, o prazo 30 e 90 dias para regularização”, disse, em nota. Até lá, podem continuar funcionando, pois apresentaram documentos de microempreendedor e empresa de pequeno porte (EPP).
Sobre o barulho, a prefeitura diz que o estabelecimento da rua Clélia foi fiscalizado e multado em junho de 2020. Em relação aos demais, segundo a administração municipal, não houve denúncia. As inspeções sanitárias das cozinhas são realizadas de forma individual, tendo em vista que cada uma constitui uma empresa.
Chef Ravioli aprova redução na estrutura
O chef Roberto Ravioli trocou uma estrutura que chegou a ter 160 funcionários e custava R$ 100 mil mensais só de aluguel por quatro contratados e R$ 8.000 gastos com locação. “Toco a minha vida, feliz”, afirma o cozinheiro, que diz ainda não ter vontade nenhuma de montar um espaço físico novamente. “Nem que me paguem”, fala.
“Uma dark kitchen é um restaurante. Pelo menos a minha”. É assim que Ravioli justifica o uso de sua “cozinha fantasma” na rua Cação, no Itaim Bibi (zona oeste). “Quando a pessoa entra no Rappi, são os produtos que o Roberto Ravioli sempre fez nos restaurantes dele. Isso no meu caso. Outros, eu não sei.”
Famoso pela participação em programas de televisão, Ravioli agora vende comida pela internet, divulgando pratos em redes sociais e no aplicativo. Para o chef, não é necessário explicar que a comida não vem de uma das casas que mantinha abertas ao público. “Não falo nada, não. As pessoas me conhecem. É muito boca a boca. As pessoas compram, a maioria [comida] congelada. Algumas dizem ‘ah, Ravioli, eu não sabia que era congelada’. Pô, enfim... Mas vai tudo pronto, põe no microondas, dá certinho. É tudo muito prático”, afirma.
Segundo Ravioli, a clientela, de modo geral, está satisfeita. “Não vejo que a diferença seja tão grande, principalmente no meu caso. As pessoas falam ‘está igual a do restaurante’ e outras, muito gentis, dizem ‘está melhor ainda’, o que acho até um exagero. Não tem diferença não”, conta.
Enquanto conversava com a reportagem, na última quinta-feira (8), por telefone, os pedidos não paravam de chegar. “Agora mesmo pediram um capeletti in brodo. Tenho lá, congelado, bem embalado. Chega em casa, abre uma garrafa de vinho, esquenta o capeletti e o custo é bem mais baixo.”
Do ponto de vista empresarial, o chef afirma que a experiência tem sido válida. "Eles oferecem o serviço de manutenção, limpeza, caixa de gordura, vestiário, segurança, bombeiro, uma série de coisas. Dentro do aluguel que pago, é muito compensador", afirma.
O chef sabe que o poder da palavra pode induzir o consumidor a tomar uma decisão na hora de escolher um prato. Ravioli cita como isso pode acontecer em relação às carnes. “Se colocar jarret, o cara compra. Se colocar stinco, compra. Escreve canela? Não compra, e é tudo a mesma coisa, tudo o mesmo prato. Escrito em francês, em italiano e em português.”
Sobre o aluguel de marcas próprias para terceiros, Ravioli lembra que quem se aventura por esse caminho, o que não é seu caso, precisa ter cuidado. “É como uma franquia. Você tem que estar lá vendo. O cara abre uma franquia de esfirra e começa a comprar 200 de você e a fazer 500 do jeito dele”, diz. “As pessoas crescem o olho, querem ganhar mais”, fala.
Cervejaria se torna parceira de cliente
Nem toda dark kitchen é obscura ou funciona em um galpão onde se frita, diuturnamente, de peixe a kibe, por exemplo. Em Santo André (ABC), uma cervejaria usou um amplo espaço com cozinha para estabelecer parceria com uma única rede de lanches para vender o mesmo cardápio por delivery e take away —quando a pessoa busca o pedido, mas não consome no local.
“É tudo igual, os fornecedores são os mesmos. A única coisa que diferencia é o cardápio de bebidas alcoólicas, porque vendemos só as nossas”, conta o gerente de marketing Renan Leonessa, 29 anos. “A equipe passou um mês em treinamento em uma unidade no Ipiranga”, completa.
Segundo Leonessa, para a geração mais nova, tanto faz se o lanche veio de uma dark kitchen ou do restaurante presencial. Ele diz, porém, que é preciso cuidar da marca alheia. “Não posso vacilar”, diz. “Tem darks e darks. Aqui, é uma cozinha de verdade, não algo amador”, afirma.
Estrutura para entregador é bebedouro, banheiro e tomada
Não é raro abrir um aplicativo e achar mais de 20 restaurantes a menos de 100 metros, mesmo que, ao olhar ao redor, você não encontre nada além de um entra e sai frenético de entregadores em um único galpão cinzento e sem identificação. A reportagem esteve em oito desses endereços nas últimas duas semanas.
Geralmente, a dark kitchen conta com um painel de chamada e um balcão por onde passam todos os pedidos produzidos nas cozinhas, de um doce a um macarrão alho e óleo. Também costuma haver tomadas para que entregadores recarreguem a bateria de seus celulares, um bebedouro e um banheiro.
O banheiro para os entregadores é um caso à parte. Em dois deles, na Fradique Coutinho (Pinheiros) e na rua Paulo de Figueiredo, na Vila Mariana, por exemplo, não havia sabonete no momento em que a reportagem esteve por lá.
Ao redor das dark kitchens, a reportagem encontrou também muitos entregadores que fazem as suas próprias refeições sentados na calçada, sem qualquer infraestrutura de apoio.
Presidente de associação vê como oportunidade na crise
O presidente do conselho administrativo da Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes) em São Paulo, Joaquim Saraiva, afirma que as dark kitchens surgiram como uma opção durante a crise provocada pela pandemia.
“Não deixa de ser uma oportunidade, porque muitos restaurantes fecharam e acabaram indo para dark kitchen, trabalhando com delivery. Os aluguéis se tornaram caros, o movimento caiu. Tivemos muitas restrições de fechamento, horários. Até hoje, estamos sofrendo essa restrição de horário”, conta.
Saraiva ressalta que o delivery pode funcionar sem limite de horário, o que é mais um atrativo. Os custos também caem drasticamente. “Começa pelo aluguel, que é dividido. Consegue diluir muito a mão de obra. Pode chegar a 30% de economia”, diz.
Empresas citam respaldo legal
Alvo de críticas, a Kitchen Central afirmou que tem cumprido com todas as regulações aplicáveis e que assim continuará. “Estamos comprometidos a sermos um bom vizinho e continuaremos tomando as medidas razoáveis para atender a quaisquer preocupações que possam se apresentar”, diz, em nota.
A Smartkitchens disse que a “autuação está equivocada, indevida e está em claro desacordo com a Resolução CGSIM nrº 51 de 11/06/2019, o que pode ser comprovado inclusive, pelo próprio Comprovante de Inscrição e Situação Cadastral (em anexo) emitido autoridade fazendária, onde consta de forma clara e formal a dispensa de licença de funcionamento”.
Ainda sobre os dois hubs, disse que contam com área de apoio para os profissionais de entrega, com sanitário exclusivo, bebedouro, área de descanso e tomadas. “Como a própria reportagem apurou, a higienização é realizada por profissional de limpeza da Smartktichens, duas vezes ao dia, em horários que antecedem o horário de pico de movimento, com produtos como detergente clorado e desinfetante industrial, e o controle da limpeza é realizado em formulário visível para todos os usuários”, afirmou, em nota. “Vale ressaltar que os sanitários dos motoboys são equipados não apenas com dispenser de sabão líquido para lavagem das mãos, mas também dispenser de álcool em gel, e papeleiras, todos repostos duas vezes ao dia”, completou.
O Rappi diz que leva “estabelecimentos promissores para novas regiões da cidade, incentivando oportunidades comerciais e a diversidade culinária dos bairros”. “Ao ampliar a região atendida pelos seus parceiros, a empresa aprimora também a qualidade do seu serviço de delivery e o portfólio oferecido aos usuários”, afirmou, em nota.
O Rappi diz também que criou seu modelo de operação via dark kitchen com o objetivo de manter a qualidade e melhores práticas referentes a fluxos e processos, e está constantemente revendo e aprimorando seus protocolos para melhor atender todo seu ecossistema de parceiros.
O Uber Eats afirmou que dark kitchens permitem que os restaurantes foquem na produção de refeições sem se preocupar com tarefas como a operação do salão ou controle dos horários dos entregadores, por exemplo. “Esse modelo se tornou ainda mais relevante ao longo do último ano, quando empresas do setor de alimentação precisaram cortar gastos e otimizar a produção para manter seus negócios abertos em meio a uma crise sem precedentes”, disse, em nota.
Os responsáveis pelo aplicativo disseram que, para ser parceiro do Uber Eats, é necessário que o empreendimento possua um CNPJ do ramo alimentício e esteja de acordo com as diretrizes sanitárias do município. “Obedecidos a esses critérios, o empresário tem a liberdade de criar diferentes marcas alimentícias sob esse mesmo CNPJ, tornando possível assim a criação de cozinhas coletivas multimarcas”, afirmou, em nota.
O Ifood disse que está sempre atento às tendências e discussões que possam impactar o seu ecossistema, que inclui consumidores, restaurantes e parceiros de entrega. “No momento, a empresa não investe diretamente no formato de dark kitchens, mas há restaurantes cadastrados que antes atuavam apenas com salão e, após entrarem na plataforma, criaram operações exclusivas para o delivery, assim como aqueles que já abrem uma operação com foco em delivery”, diz, em nota.
Os responsáveis pelo aplicativo disseram ainda que a empresa exige, em contrato, que os estabelecimentos parceiros cumpram todos os requisitos legais necessários para a operação, conforme estabelecidos pelo poder público.
Procurada, a Mimic não se manifestou até a publicação desta reportagem.