A dor pela despedida precisa passar rápido na comunidade
A necessidade de garantir sustento e sobrevivência divide lugar com o luto em Heliópolis
Conteúdo restrito a assinantes e cadastrados
Você atingiu o limite de
5 reportagens
5 reportagens
por mês.
Tenha acesso ilimitado: Assine ou Já é assinante? Faça login
O coronavírus tem provocado despedidas doloridas e inesperadas na comunidade de Heliópolis (zona sul), espremida entre a Covid-19 e a necessidade de buscar sustento para seus moradores. Para a psicóloga Abília Santiago de Souza, 39 anos, a morte do pai no início de maio foi um momento crucial para perceber que na vida há adeus sem volta.
Pedreiro aposentado e pastor da Assembleia de Deus, Osvaldo Bento de Souza, 74, morava na comunidade e morreu em 2 de maio em decorrência do coronavírus. “Por ter perdido o meu pai, deixei de observar os casos na mídia e passei a vivenciar a pandemia. O impacto é diferente”, diz.
O mundo seguiu indiferente à dor da psicóloga. “Sei que dá desespero, que existe a necessidade de sair de casa. Mas é preciso se isolar para o seu cuidado e dos outros. Estou em processo de luto e escuto ‘parabéns a você’ toda a semana, com festinha. É preciso alertar sobre a gravidade
do problema.”
Abília acredita que o pai se contaminou durante tratamento contra o câncer. Debilitado, os filhos chamaram o Samu para levá-lo. “Coloquei meu pai na ambulância e depois não tive mais controle. É a sensação de que se está abandonando alguém. Você só sabe do que está acontecendo por ligações”, afirma.
Entre a casa e o hospital, os filhos ainda se lembraram de buscar um sapato para o pastor, levado descalço na ambulância. “Mas ele não iria andar mais. A gente achava que voltaria para casa”, diz Abília.
Osvaldo morreu no Hospital Regional de Osasco (Grande SP), para onde foi transferido após socorro inicial no Ipiranga (zona sul). Houve delicadeza de quem estava do outro lado da linha, segundo Abília.
“Eles souberam como dar a notícia. ‘É do hospital e a gente precisa de um familiar aqui urgentemente’. Não ter ouvido a palavra morte ajudou muito”, diz. Os filhos não viram mais o pastor. “Não fizemos o velório, mas conseguimos um enterro digno.”
Comerciante teve medo do preconceito
A vida de quem apresenta sintomas da Covid-19 também não é a mesma em Heliópolis. O medo do contágio provoca olhares desconfiados nas vielas da comunidade da zona sul e nem todos aceitam falar que tiveram ou têm a doença.
O comerciante João da Silva Miranda, 40 anos, afirma que foi contaminado pelo coronavírus e que passou 16 dias sem colocar o rosto na janela. “A gente percebe um receio, de a pessoa dar um passo para trás quando pergunta sobre você”, diz.
Miranda afirma que nada do que sentiu lembrou uma “gripezinha”. “Fiquei mal mesmo, não conseguia levantar da cama”, conta.
O comerciante diz que tem como único vício o cigarro e que, durante o período em que ficou doente, temeu a morte. “Pensava ‘se precisar de hospital, vou morrer’”, afirma.
Miranda conta que, embora tenha certeza da contaminação, não conseguiu fazer o teste para atestar a Covid-19. “Tentei particular, custava R$ 400, mas já estavam todos vendidos, até o que ainda não tinham chegado”, afirma.
Uma das reclamações constantes entre lideranças e moradores é a dificuldade para se confirmar que os sintomas são mesmo provocados pelo coronavírus, o que gera incertezas sobre a necessidade de distanciamento social. “O teste seria muito bom, porque daí a pessoa sabe o que tem e fica em casa para não passar para outros.”
Da falsa cesta básica sobra esperança
Na última terça-feira (19), o dia começou com uma promessa infundada para os moradores de Heliópolis. Às 9h, uma fila se formava em frente à sede da Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região), na rua da Mina.
Alguém havia dito que o local seria um ponto de distribuição de cestas básicas, o que despertou o interesse de parte da comunidade. Não era verdade, mas as pessoas não arredavam pé e foram cadastradas para receber ajuda, quando houver.
Segundo lideranças comunitárias, o desemprego no local saltou de 20% para 40%, após a pandemia.
Pintor em uma metalúrgica até o início da crise, Gustavo Lima, 40 anos, buscava atendimento.
“Dispensaram a gente por mensagem e estou sem dinheiro. Não posso esperar a crise passar”, afirma. “Ainda não fizeram o acerto”, fala.
A perspectiva também não é boa. “Não tem nem onde entregar currículo. Temos que ser realistas”, diz.
Ajudante de cozinha, Rita de Kassia Ferreira da Silva, 18, também perdeu o emprego. “Tenho um filho de dois anos e estou vivendo com a ajuda da minha sogra. Para mim, a cesta básica era importante”, conta.
Nas vielas, o recado sobre a gravidade se espalha
As lideranças comunitárias de Heliópolis (zona sul) têm lutado para obter mais recursos e feito o possível para conscientizar a população sobre a gravidade do coronavírus. Por toda a comunidade, cartazes alertam sobre a Covid-19.
Com o aglomerado de vielas, é difícil obter sucesso no distanciamento social. “O esforço tem sido no sentido de se manterem em casa, apesar da dificuldade. Tem o tamanho da casa, falta de ventilação. Não se imaginou que seria por tanto tempo. São dois meses e meio”, afirma Antonia Cleide Alves, presidente da Unas (União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região).