Profissionais de reabilitação salvam motoboys durante a pandemia
Especialistas cuidam das sequelas físicas e psicológicas provocadas pelos acidentes no trânsito
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Quando tudo dá errado e o que seria uma simples entrega se torna um grave acidente, motoboys veem a vida mudar a partir do resgate no asfalto. É aí que surgem os profissionais de saúde capazes de ajudá-los para, enfim, devolvê-los reabilitados à sociedade, por mais que as cicatrizes sejam profundas.
Mais requisitados do que nunca, motociclistas vão na contramão da estatística de queda de vítimas fatais no trânsito durante a pandemia do novo coronavírus. Só na capital paulista, 110 pessoas morreram em acidentes com moto entre março e junho, ante 89 em igual período do ano passado (um aumento de 23,6%).
Pela falta de proteção em relação aos outros veículos, aqueles que não morrem têm grande chance de ficar com sequelas pelo resto da vida. Aí entra em ação o trabalho de profissionais como os da Rede Lucy Montoro, especializada na reabilitação desse tipo de paciente. “Os números de fraturas e amputações são proporcionais. Temos também uma grande parte que fica paraplégica ou tetraplégica, por lesão medular”, conta Linamara Rizzo Battistella, idealizadora da rede e professora da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
O trabalho de recuperação envolve várias áreas do conhecimento, principalmente nos casos em que o motociclista sofreu uma amputação. “O médico precisa entender quem é esse paciente do ponto de vista cardiovascular, do sistema muscular e cognitivo. Como integra esse pedaço novo no corpo dele? Tenho que olhar e enxergar como se fosse minha perna, por exemplo”, explica Linamara.
A idealizadora da rede conta que os acidentes são transformadores na vida das vítimas, geralmente pessoas jovens.
“Quando se deparam com o que está acontecendo, vêm a perda e a depressão, que é muito comum. Eles saem de uma condição de plenitude para aquela de merecer cuidados”, diz.
O tratamento não passa apenas pelos cuidados com o corpo. “São pessoas em idade produtiva, que levam o sustento para a família. Quando resulta em amputação, em lesão encefálica importante, vai impactar não apenas essa pessoa, mas a todos do entorno”, diz a psicóloga Daniele Araújo.
Segundo Daniele, o processo vivenciado pelos pacientes é muito similar ao do luto e afeta também a autoimagem. “Temos muitas histórias de pessoas que chegaram com feridas importantes na masculinidade, por achar que não seriam mais atraentes para ninguém, nem para a esposa ou como figura paterna. Isso é muito recorrente”, relata. “Sobreviver seria sair do hospital e ir para casa. O que buscamos é que eles vivam, que tenham satisfação pela vida.”
Entregador encara nova realidade após ter perna amputada
No Dia das Mães, o motoboy Eberton Barbosa, 30 anos, recebeu um chamado atrás do outro para fazer entregas pelo Uber Eats. A sequência foi interrompida quando, às 20h45, em um acesso à rodovia Anhanguera (zona norte), bateu de frente em uma Ecosport. Acordou do coma oito dias depois, no Hospital das Clínicas, onde passou mais de um mês e meio internado.
"Amputaram minha perna esquerda do joelho para baixo. Recebi quatro pinos na bacia, um pino na mão direita e fraturei a coluna", conta.
O trabalho pelo Uber Eats aos sábados e domingos foi a forma encontrada pelo motoboy para pagar o almoço na rua de segunda à sexta, em outro serviço. Conseguia receber entre R$ 100 e R$ 110 por fim de semana.
Barbosa conta que a família buscou apoio da Uber Eats e, ao informar que o motociclista estava em tratamento pela rede pública de saúde, não foi mais procurada. "Estava trabalhando para eles havia um ano e meio. Tinha 99% de aprovação positiva", conta.
Por sorte, o motoboy conseguiu manter o tratamento na unidade da Vila Mariana da Rede Lucy Montoro, onde aguarda a alta para seguir para casa. "A psicóloga veio, falou comigo e disse que agora era outra vida. A minha habilitação foi perdida. Carro, só automático, e moto, nem pensar. Sempre gostei de moto. É a minha paixão. Eles disseram que a maioria que teima em pilotar não dá dois anos e sofre outro acidente."
Sobre o atendimento dos profissionais da reabilitação, é só elogios. "Eles são 100%. Não tem nem o que falar. É tudo enfermeiro bom." (WC)
Saúde em primeiro lugar
A amputação é um procedimento relativamente comum entre motoboys que foram vítimas de acidentes graves e, muitas vezes, as próteses, que podem custar até R$ 60 mil, são a melhor forma para aproximá-los da normalidade. Mas nem tudo é tão simples.
Na Rede Lucy Montoro, eles recebem o equipamento de graça. "É uma modificação corporal definitiva. A gente consegue até fazer prótese para correr mais rápido, pular mais alto. Ele fica um homem biônico, com a tecnologia. Mas nunca será a perna dele", diz o médico fisiatra André Sugawara.
Há 13 anos no setor de reabilitação, o enfermeiro Antenor Bispo é responsável por um passo importante antes da aplicação da prótese. É ele quem conhece as técnicas corretas de enfaixamento que vão transformar o coto em um formato cônico, ideal para receber o equipamento.
A percepção de Bispo sobre os pacientes, porém, vai além dos cuidados médicos. No contato diário com os pacientes, ele percebe a "mobilização íntima" de cada um, o que vai fazer com mudem a própria forma de enxergar a vida. "Eles estão nessa correria no dia a dia. Quando têm uma deficiência, são obrigados então a se dedicar ao corpo, à saúde, para não ter complicações, e à própria família. Você percebe essas pessoas dando valor aos outros." (WC)
Pressão dos clientes e pressa aumentam risco
A pressão dos clientes e a necessidade de realizar o maior número possível entregas para receber uns trocados a mais fazem os motoboys acelerarem ao máximo, aumentando os riscos.
"O que está faltando para a sociedade é entender as distâncias. Quando fala 'vai com pressa', está estimulando isso", diz a professora Linamara Rizzo Battistella. "A população precisa ser vigilante em relação ao tempo. Se um motoboy veio de Santana até a Vila Mariana em 15 minutos, alguma coisa está errada", afirma.
O médico fisiatra André Sugawara diz que há várias questões envolvidas, além da necessidade de trabalho. "Tem um aplicativo que não dá nenhuma garantia, porque está preocupado com a entrega, não com o entregador. E uma pessoa que quer o produto e despersonaliza esse serviço", explica.
Segundo Sugawara, o motoboy que é atendido na reabilitação chega ferido também em seus direitos. "A pessoa está aqui, presencialmente, mas a alma dela ainda está no chão, na rua", conta. "É preciso garantir uma forma de sustento. Comida não é luxo, é um direito." (WC)
Outro lado
A Uber disse lamentar o acidente com Eberton Barbosa. Falou que os entregadores são cobertos por um seguro para acidentes pessoais desde o momento em que aceita uma solicitação para buscar um pedido, até o momento da entrega para o usuário, e que analisa caso a acaso. "Assim que soubemos do acidente, no dia 5 de julho, o suporte da empresa entrou em contato com familiares de Eberton e, pelo que foi possível verificar, identificou que o mesmo aconteceu após ele cancelar uma solicitação e ficar offline no aplicativo Uber Eats", disse, em nota.
O Ifood afirma que oferece seguro de acidente pessoal gratuitamente aos entregadores, com cobertura de até 1h e 30 km depois da última entrega. Diz que, até o momento, a apólice concedeu R$ 430 mil a parceiros.
Já a Rappi, diz que, desde o ano passado, conta com seguro para acidente pessoal, invalidez permanente e morte acidental.
Questionados, nenhum dos aplicativos informou quantos entregadores notificaram acidentes em busca de indenização. (WC)