Sem Carnaval, ritmistas de escola de samba da periferia de SP ganham dias de beleza
Projeto Rainhas do Ritmo, da agremiação Estrela do 3º Milênio, do Grupo de Acesso, buscou aumentar a autoestima das meninas
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O Carnaval era para ter sido uma semana de alegria, não fosse a pandemia. De uma rotina intensa de ensaios e reuniões constantes, o que sobrou foi o isolamento social nas escolas de samba. Com isso, o baixo astral tomou conta de integrantes das agremiações.
Mas uma ação de beleza da escola de samba Estrela do Terceiro Milênio, do Grupo de Acesso paulistano, batizada de Rainhas do Ritmo, ajudou a resgatar a autoestima e o ânimo de parte das ritmistas da agremiação do Grajaú (zona sul da capital paulista).
Numa espécie de “dias de princesa”, 55 delas ganharam maquiagem, figurino e sessão de foto, tudo feito por profissionais, além de terem suas imagens pós-produção inseridas em um cartaz. Quase todas choravam de emoção ao se olhar no espelho.
A transformação mudou a forma como as meninas da bateria Pegada da Coruja passaram a se enxergar e, ainda, fez com que os homens desse setor, que tem cerca de 200 componentes, passassem a vê-las também com outros olhos.
“O Carnaval é um ambiente estético e a bateria é predominante masculina. Então às vezes precisamos nos impor para mostrar que sabemos tocar. A vaidade fica de lado, porque vamos ensaiar com roupas confortáveis e sem maquiagem”, afirma a professora Juliana Castro, 33 anos, que toca repinique. Moradora no Jardim Varginha (zona sul), ela passou pelo processo em 2020 —outras integrantes tiveram “dia de beleza” no início deste mês.
O projeto foi tão impactante para Juliana, que ela chegou a fazer dois trabalhos como modelo, sendo um deles pago. “Esse dia foi essencial porque de repente encontrei uma beleza dentro de mim e uma oportunidade de ganhar um extra.”
A autônoma Sabrina Oliveira, 22, de Parelheiros (zona sul), que toca chocalho e desfila na escola há três anos, adorou o resultado. “Foi muito triste se afastar da escola por causa da pandemia, um vácuo, foi muito desestimulante”, afirma ela, que fala do projeto.
O projeto está ligado ao samba-enredo da Estrela do Terceiro Milênio, "Ôh Abre Alas Que Elas Vão Passar”, que nem vai mais ser mostrado neste ano no Sambódromo do Anhembi (zona norte), já que o prefeito Bruno Covas (PSDB) cancelou o Carnaval de 2021.
“O enredo fala desde Chiquinha Gonzaga, que se recusou a assumir um pseudônimo masculino para assinar suas composições, a Elza Soares, que foi obrigada a casar cedo e vivia com uma lata pesada na cabeça para lavar roupa e cuidar dos filhos”, conta o carnavalesco Murilo Lobo. “Optei por esse tema após perder uma mulher que foi muito importante na minha trajetória, a mãe da minha filha, minha ex-mulher, mas que foi uma grande parceira.”
A ideia, de acordo com o mestre de bateria Vitor Velloso, era que as meninas dessa ala se sentissem homenageadas pelo enredo.
Idealizador do projeto de beleza, ao lado da assessora Lara Schulze, ele afirma que se surpreendeu com o resultado. “Deixou de ser apenas um projeto de sessão de fotos, estético, para se transformar em um projeto social, de autoestima. Passei a conhecer muito mais as meninas da minha bateria.”
E foi assim que a estudante e ritmista Nara Coelho, 11 anos, se sentiu. Ela ia estrear na passarela. “Foi frustrante [não poder desfilar]. Mas a maquiagem e a sessão de fotos deram uma alegrada”, afirma.
Para a mãe dela, a estagiária de fisioterapia Cíntia Coelho, 34, que é do grupo de apoio da bateria, estar no projeto foi “uma sensação única”.
A recepcionista Giovanna Lemos, 21, admite que ficou bastante decepcionada por não poder desfilar neste Carnaval. “Ter que ficar longe de todos foi bem difícil, não fazer o que estamos habituados foi bem estranho.” Por isso, para ela, o projeto de beleza trouxe muito mais que uma maquiagem bem feita. “A pandemia é uma coisa horrível e não vejo a hora de voltar a tocar com os amigos”, diz ela, que assume o surdo de terceira.
“Me senti mais mulher [com as fotos], mais bonita e, principalmente, mais respeitada. Tive a certeza do meu potencial. Vou levar essa experiência para a vida. Nunca mais vou aceitar ser colocada para baixo. Tocamos o que quiser e onde quisermos”, diz a ritmista, se referindo ao papel das mulheres nas escolas de samba.
O motoboy Luiz Couto, 26 anos, diretor de surdo na bateria da escola, afirma que as “meninas” se soltaram mais e passaram a tocar com mais liberdade. “Acredito que quando voltarmos aos ensaios, isso vai ajudar até mesmo na questão técnica, porque elas ficaram menos intimidadas, e mais seguras.”
O técnico em enfermagem Henrique Franco, 27, também diretor de surdo, concorda. “Elas pareciam outras pessoas, passamos a olhar de forma diferente sim, com a certeza que elas são maravilhosas.”
A manicure Juciene Aparecida Macedo Vieira, 57 anos, gostou de ser notada. Ela, que toca cuíca, conta que foi convidada para participar da ação de beleza, mas disse não por ser tímida. “Mas aí comecei a ver aquelas meninas lindas saindo do barracão e acabei me animando”, afirma.
No fim, segundo a manicure, foi uma experiência prazerosa. “Ainda bem que não desisti, porque despertou em mim uma pessoa que eu não conhecia e passei a amar”, conclui Juciene.