Moradores do Grajaú (zona sul da capital paulista) se mobilizam, desde o início desta semana, para ajudar um idoso, de 68 anos, que tenta provar estar vivo.
Jorge Ferreira Monteiro descobriu "que estava morto" no papel, quando foi a uma unidade do Poupatempo, em Santo André (ABC), para solicitar uma segunda via de RG, há cerca de cinco anos. A morte do idoso foi atestada pelo Serviço Funerário da mesma cidade em abril de 2004.
Ele acredita que sua cédula de identidade, que afirmou ter perdido há cerca de 17 anos, possa ter sido usada por outra pessoa, o que provocou toda a confusão.
O caso dele ficou conhecido no Grajaú após um grupo que ajuda pessoas em situação de rua o abordar perto do terminal Grajaú e publicar em uma rede social um resumo de sua história —a publicação foi vista por quase 200 mil pessoas em poucas horas, segundo o administrador da página Grajaú Tem no Facebook.
A auxiliar de cozinha Dalila Pacheco, 28, ajudou a mobilizar moradores da região, quando soube da história. "Eu estava sem R$ 1 no bolso. Mas consegui, com a ajuda de algumas pessoas, a encontrar uma casinha e já deixar um mês de aluguel pago", afirmou.
Segundo ela, uma vaquinha feita por pessoas da região já está garantindo mais dois meses de aluguel para Monteiro e sua companheira, Maria Antônia de Paula, 65, que passaram a morar na casa simples com cozinha, quarto e banheiro, em uma travessa da estrada da Ligação, no Grajaú.
Sentado em um sofá, ao lado da janela do quarto e sala, Monteiro mostrou sua declaração de óbito, assim que avistou a reportagem do Agora na última quarta-feira (17).
No documento, emitido pelo 2º Cartório de Registro de Pessoas Naturais de Santo André, consta que o idoso "morreu" às 8h57 do dia 13 de abril de 2004, em uma praça na Vila Metalúrgica, de insuficiência e cirrose hepática, quando estava com 51 anos. Além disso, o documento informa o local do sepultamento: o Cemitério Nossa Senhora do Carmo.
Migração
Natural do Recife, (PE), Monteiro afirma ter migrado para Santa Catarina, quando tinha 22 anos. Ele permaneceu por aproximadamente 20 anos no estado do Sul, mudando em seguida para São Paulo, onde dormiu em albergues e pensões baratas, entre o litoral, a capital e o ABC.
"Eu ia trabalhando em várias coisas. Até que fui para Santo André [em 2003] e perdi todos os meus documentos. Daí em diante, fiquei usando só um xerox que tinha de meu RG", afirmou.
Cerca de um ano depois, segundo registrado em um cartório da cidade do ABC, Monteiro "morreu". Porém, ele demorou pouco mais de uma década para descobrir "a morte", em 2015. "Só fui saber que estava morto quando fui pedir uma segunda via de RG, porque um emprego que estava arrumando em Santo André pedia o documento original", disse.
"Quando me falaram que eu estava morto, achei que era uma piada. Bati as mãos em meu corpo e falei para o moço que devia ter alguma coisa errada, ou eu era uma assombração e não sabia", afirmou às gargalhadas.
Monteiro disse que "deixou por isso mesmo" e se mudou para a capital paulista, também em 2015, quando conheceu Maria Antônia, com quem passou a dividir os apertos de suas vidas. "A gente dorme em pensão, quando sobra um dinheirinho, em albergues, quando consegue vaga e, na rua, quando não tem outro jeito", destacou.
Em janeiro do ano passado, o idoso finalmente pediu ajuda à Defensoria Pública, que cuida do processo de anulação da certidão de óbito, desde então.
A defensoria afirmou, em nota, que o caso está em andamento. Na última atualização, acrescentou, a Justiça mandou oficiar a Secretaria da Saúde de Santo André, pedindo informações sobre o registro de óbito do idoso.
José Roberto Sodero Victório, presidente da Comissão de Direito Previdenciário da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo, ponderou que a “morte” do idoso de 68 anos pode ter ocorrido, possivelmente, pelo fato de outra pessoa ter usado os documentos perdidos dele, como foi relatado à reportagem.
“Ele poderia receber auxílio emergencial, por causa da pandemia da Covid-19, ou algum benefício assistencial, mas tudo isso está impedido, pois, o CPF dele foi automaticamente cancelado, assim que a certidão de óbito foi feita”, explicou.
Para reverter a situação, acrescentou o advogado, uma ação judicial precisa determinar ao cartório a retificação do registro de óbito. “A ação precisa provar que este senhor está vivo, usando a digital dele, por exemplo, e também ouvindo membros de sua família para provar, testemunhalmente, que ele é ele mesmo.”
O especialista disse ainda que, caso for provada alguma culpa por parte dos envolvidos na realização da certidão de óbito, o idoso pode mover uma ação de indenização contra os eventuais responsáveis.
Resposta
A Prefeitura de Santo André (ABC) afirmou que o Serviço Funerário da cidade registra óbitos mediante a apresentação de documentos originais, além da declaração de óbito emitido por hospitais ou pelo IML (Instituto Médico Legal).
"Ressaltamos que todo o procedimento é feito somente com os documentos originais do falecido e também do declarante", disse nota da gestão Paulo Serra (PSDB). "Todos esses dados constam na certidão de inteiro teor expedido pelo 2º Cartório de Registro de Pessoas Naturais, documento que a reportagem já teve acesso."
"Com relação às medidas para reverter a situação, elas devem ser tomadas judicialmente, não cabendo ao Serviço Funerário", afirmou trecho da nota.
A SSP (Secretaria da Segurança Pública), gestão João Doria (PSDB), disse que a Polícia Civil "está à disposição para que o idoso formalize o relato dito à reportagem", apesar de a Defensoria Pública já ter entrado com uma ação judicial. A pasta também responde pelo IML (Instituto Médico Legal).
"Caso comprovada ação dolosa ou culposa nesse registro [de morte], serão tomadas as medidas para resolver o problema causado e adotada providência administrativa disciplinar interna", afirmou.
Segundo o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), a mais recente atualização do processo do idoso, ocorrida no último dia 3, foi a solicitação do envio "com urgência" das digitais colhidas do corpo encontrado na praça do ABC, em 2004.
"No tocante à perícia papiloscópica, relego-a para momento oportuno, com a vinda das digitais do cadáver da qual decorreu o registro da morte", diz trecho de documento assinado pela juíza Vivian Labruna Catapan, da 2ª Vara de Registros Públicos.
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