Hospitais em SP adotam prontuário afetivo para pacientes com Covid-19
Modelo inclui itens como comida favorita, gosto musical e nome dos familiares
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Um prontuário médico costuma conter a identificação do paciente, hipóteses diagnósticas, resultados de exames, prescrições, observações e boletins sobre o estado de saúde da pessoa. Dois hospitais municipais de São Paulo, no entanto, resolveram aderir a um modelo extra e diferenciado que busca humanizar o tratamento de pacientes com Covid-19: o prontuário afetivo.
Apelido, comida favorita, nome dos integrantes da família, preferências musicais, passatempos e time de futebol do coração são alguns dos itens que compõem o prontuário alternativo dos hospitais municipais da Bela Vista, no centro, e da Brasilândia, na zona norte da capital.
O modelo tradicional do documento segue existindo, mas a versão afetiva faz parte do acolhimento dos pacientes com Covid-19 desde maio, no hospital da Brasilândia, e desde junho, no da Bela Vista.
Segundo Geiza Oliveira Silva, psicóloga da unidade da zona norte, mais de 150 prontuários afetivos foram criados entre maio e a primeira metade do mês de agosto. "Foi algo muito bem recebido pela equipe médica e de enfermagem. Quando chega um paciente novo, que ainda não tem o prontuário afetivo, a própria equipe solicita", relata.
Geiza explica que o documento é feito pela equipe de psicologia do hospital para todos os pacientes com Covid-19, que podem estar internados na UTI (Unidade de Terapia intensiva), ou na enfermaria. Se a pessoa está entubada, é feita uma ligação para os familiares para descobrir quais seus gostos, apelidos favoritos e hobbies, por exemplo.
"Deixamos as informações no leito e a equipe chama o paciente pelo nome que ele gosta quando vai manuseá-lo. Também fazemos estimulação sonora para os pacientes entubados, então, colocamos a música que eles gostam de ouvir para ir retomando a subjetividade mesmo inconscientes", diz a psicóloga.
Quando é possível se comunicar, os profissionais fazem uma conversa para conhecer o paciente e colher as informações. A supervisora da equipe multiprofissional do Hospital Muncipal da Bela Vista, Graziela Ultramari Domingues, esclarece que os itens dos prontuários são variados e não seguem um modelo padrão.
"Um prontuário nunca é igual ao outro. Cada paciente tem seus gostos, suas preferências. Tentamos deixar isso o mais individualizado possível", argumenta.
Vovó
"Prefere que a chame de vovó", dizia o prontuário afetivo da aposentada Senhorinha Rocha de Lacerda, de 84 anos. Ela ficou internada por apenas uma semana no hospital Bela Vista, mas, durante o período, fazia questão de que a equipe do hospital a chamasse pelo apelido. "Eu não sou dona de nada. Virei vovó de todo mundo", explica a aposentada.
Senhorinha chamava todos os profissionais de saúde de anjos. Durante sua internação, uma das enfermeiras trançou o cabelo dela para que se sentisse mais arrumada. “Sou fresca, gosto de andar de cabelo pintado, fazer sobrancelha, andar de batom", conta a agora ex-paciente.
A supervisora da equipe da unidade afirma que o prontuário é uma ferramenta que favorece a aproximação com a pessoa que está internada. "Eles se ficam mais seguros em relação ao tratamento, porque sentem que estão sendo vistos. Isso favorece na adesão aos procedimentos, por parte do paciente e do familiar", diz Graziela.
O vendedor Reginaldo de Sousa Ferreira, 51, ficou internado por cerca de 40 dias. Nesse período, foi duas vezes para a UTI, pois tinha diabetes e cirrose, o que trazia complicações para o quadro da Covid-19. Em seu prontuário, estava o nome da esposa, Patrícia, e o lembrete de que seus filhos eram seus grandes amores.
Segundo o vendedor, que já teve alta, a iniciativa dava ânimo e coragem para lutar mais. “Sem a ajuda dos funcionários e da família é impossível vencer essa doença. Foi muito bom poder pregar ali no cantinho um pouco da identidade da gente. É uma coisa que deixa a gente feliz”, relata.
Família
Esposo da Juliana, papai da Deborah e do Benjamin, toca clarinete, ama salmão e é palmeirense. Essas eram as informações do prontuário afetivo do empresário Gabriel Rodrigues, 38, que ficou internado no Hospital Municipal da Bela Vista por cerca de três meses, dois deles na UTI, e um na enfermaria.
A dificuldade na respiração fez com que ele tivesse que ficar entubado por vinte dias. Quando saiu da UTI, relata, foi imprescindível que a equipe do hospital tivesse informações atualizadas sobre sua família.
"Alguns medicamentos acabam causando um pouco de alucinação. Enquanto estava entubado ou sedado, teve uma situação, que pareceu muito real, de uma conversa com minha esposa em que eu perguntava sobre as crianças e ela dizia que a Deborah [filha] havia falecido em um acidente doméstico", conta Gabriel.
Após acordar, assim que recuperou a fala após auxílio dos profissionais que o acompanhavam, sua primeira conversa com a equipe do hospital para saber como estava a filha. Descobriu que nada havia acontecido com a menina de quatro anos
"A psicóloga falou que a Deborah estava bem, que tinha enviado um vídeo há dois dias cantando para mim. A partir desse momento que a equipe soube que eu estava imaginando isso, eles passaram a dar uma atenção ainda maior. Isso foi uma alavanca total para minha recuperação", explica.
Hoje, Gabriel voltou à sua rotina de trabalho no salão de beleza do qual é dono. Ele diz sentir saudades das pessoas do hospital. "Cria-se uma certa proximidade. Não digo só com os médicos, mas enfermeiros, pessoal que faz manutenção, limpeza. Se fosse uma relação mais distante, como geralmente é, a recuperação poderia não ter sido plena. Ou até eu não tivesse tido a recuperação", argumenta.
Humanização
Para a enfermeira do Hospital Municipal da Brasilândia, Milena Mendonça Caboatan, o trabalho de humanização é reconfortantante também para a equipe multidisciplinar que lidam com os pacientes. "Passamos 12 horas do nosso dia aqui e, quando vamos embora, saímos com uma sensação de dever cumprido", afirma.
Além do prontuário afetivo, Milena cita outras ferramentas complementares ao tratamento dos pacientes com Covid-19, tais como grupos de apoio familiar, oficinas terapêuticas e uso de música. "Também há um grupo de apoio para nós, colaboradores, que trabalhamos aqui", diz.
O psicólogo Ricardo Milito explica que a humanização faz com que as relações dentro do ambiente hospitalar deixem de ser frias e técnicas, como costumam ser. "A equipe acaba percebendo que ali tem pessoas como eles naquela situação. Pessoas que têm filhos, religião, vida."
De acordo com Milito, ações multidisciplinares também trazem benefícios na dinâmica profissional da equipe, que se torna mais integrada e passa a absorver conhecimentos e informações de áreas diferentes. "Os enfermeiros trabalham em conjunto com psicólogos, médicos, nutricionista. Isso traz uma aproximação e união dos profissionais da saúde", esclarece.
Criar vínculos com o paciente e com os familiares é uma via de mão dupla, defende o psicólogo. Segundo ele, a orientação médica quando vai além do âmbito técnico reflete na saúde física, emocional e social dos pacientes e dos profissionais.
"Para a psicologia, a afetividade é a capacidade do ser humano de experimentar e trocar emoções, sentimentos, carinho. Através do afeto, a gente consegue trabalhar melhor a convivência", complementa.