Sem termômetro na entrada, controle de acesso, distanciamento físico ou apoio governamental, milhares de camelôs vão para as ruas todos os dias enfrentar o coronavírus em busca do sustento. Muitos acabaram contraindo a doença nos últimos quatro meses, um risco presente na vida de quem está na encruzilhada entre o desamparo e a obrigação de colocar comida na mesa de casa.
O cearense Ricardo Cruz, de 50 anos, trabalha como camelô no Largo 13 de Maio, em Santo Amaro (zona sul), há 25 anos. Chegou a ficar recolhido por causa da pandemia, mas acabou infectado pelo coronavírus. "Não sentia cheiro e gosto de nada. Muita febre e dor pelo corpo. Tomei muito chá de gengibre", diz.
Apesar do trauma e das incertezas sobre a possibilidade de um novo contágio, Cruz se viu obrigado a montar novamente sua banca de cintos para manter a renda.
Só o auxílio emergencial de R$ 600 não é suficiente para pagar as contas da casa, onde mora com a mulher, um filho de 14 anos e uma neta de 2. "Não cobre o padrão da gente. Eu preciso trabalhar", afirma.
Os cuidados passam pelo uso de álcool em gel para si mesmo e para os clientes. "Mas não é a mesma coisa de você estar em uma loja ou em um escritório", fala.
A situação do vendedor de cintos é parecida com a dos quase 400 ambulantes irregulares que se aglomeram ao redor da Catedral de Santo Amaro no dia a dia. Vários foram contaminados e ao menos dois morreram por causa da Covid-19, segundo os colegas.
À margem da legislação trabalhista e de qualquer proteção legal, os ambulantes contaram até agora com a solidariedade entre si mesmos para atravessar a pandemia. "A gente teve que se reunir para distribuir cestas básicas para os camelôs. Entre nós mesmos. 'Olha, um irmão está precisando'. Ajudamos uns quatro ou cinco assim", diz Fernando Rodrigues, 55 anos, 30 deles nas ruas.
O auxílio dos colegas não se limitou à comida. "Peguei um caderno e saí recolhendo dinheiro para um, dinheiro para outro. Isso para os mais necessitados. Teve quem ficou até sem condição de comprar mercadoria e a gente conseguiu fazer com que eles voltassem. Aqui, a gente tem união", conta Rodrigues, que criou quatro filhos trabalhando no Largo 13. Uma delas, hoje, vive como enfermeira na Irlanda.
Preconceito é mais uma barreira
A ambulante Paula Cristina, 40 anos, voltou para as ruas no fim de junho, após três meses sem trabalhar. É de uma banquinha improvisada na rua Xavier de Toledo (região central) que leva o sustento para os cinco filhos em Suzano (Grande SP), distante uma hora e meia de trem dali.
"Meus filhos não saem de casa para nada, mas eu tenho que sair. Sou mãe, sou pai, então tenho que correr atrás. Se não trabalhar, as contas não esperam, não", conta. "Todos que estão na rua é porque precisam. Eu não estaria aqui me expondo se não precisasse", diz.
Paula diz que, além do medo da contaminação pelo coronavírus, tem que lidar com o preconceito por ser camelô. "Somos tratados como marginais, mas, a partir do momento em que trabalho para me manter e manter os meus filhos, eu não sou, não. Só se eu estivesse roubando."
A necessidade expõe o drama de milhares de pessoas que vivem na informalidade. "Não posso ficar em casa esperando alguém me chamar para trabalhar ou o governo vir me ajudar."
Homem-placa volta para pagar contas
Das 8h às 18h, com uma hora de almoço, José Gilson Carvalho Silva, 60 anos, carrega consigo uma placa de compra e venda de ouro por Santo Amaro (zona sul). Viu o pagamento diário pelo trabalho encolher de R$ 40 para R$ 30 durante a pandemia. Tentou ficar em casa entre 19 de março e 3 de julho. Mas teve que voltar para as ruas para sobreviver.
"Digo abertamente. Sou sozinho, não tenho filho, não tenho mulher, nada, e R$ 600 [do auxílio emergencial] não dá nem para começar", afirma Silva. A conta faz sentido na vida de quem viu o aluguel do quarto onde vive, na zona sul, pular de R$ 350 para R$ 400.
Depois de uma vida registrado em empresas formais, ele já está há dez anos trabalhando nas ruas. "Se não estou aqui com a placa, estou ali vendendo alguma coisa. Trabalho com o que eu achar. Quando estou parado, um me chama para lá e outro para cá", diz José, que não sai com os amigos por não ter dinheiro.
Camelôs passam dificuldade com falta de fregueses
O fato de já receber um benefício de R$ 350 por causa da amputação de um dedo impediu o camelô Cícero Francisco Antônio, 56 anos, de ganhar o auxílio emergencial de R$ 600. Sem a grana das bolsas, sacolas e bonés que vende no Brás (região central), passou necessidades durante o período que permaneceu recolhido por causa do coronavírus e se viu sem alternativa.
"Fiquei um mês parado, devendo para todo mundo, dependendo da ajuda de um, de outro. Tive que voltar a trabalhar. É morrer de corona ou de fome", diz.
Antônio voltou para a rua, mas os clientes rarearam. "Ninguém para para ver nada. E vai ficar pior ainda. A maioria está desempregada. Lojas, bares, tudo está fechando", afirma.
No entorno do Mercado da Lapa (zona oeste), é justamente um acessório para combater o coronavírus que garante a renda da cearense Francisca Uiranilda Amaral Martins, 41, que veio de Fortaleza para a capital paulista há pouco mais de um mês. "As pessoas estão sobrevivendo vendendo as máscaras. Dá para ganhar uns R$ 100 por dia."
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