Vida de gandula vai do perrengue ao êxtase
Pela paixão ao clube e por visão privilegiada, vale a pressão e até se envolver em confusões
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Do gramado de Itaquera dá para ver melhor do que de qualquer outro lugar, na imponente arena corintiana, as canetas, os chapéus e a troca de palavras acaloradas entre os jogadores e técnicos. Em dia de clássico, então... A visão privilegiada, entretanto, vem com uma responsabilidade: olho na bola a todo o custo!
Quando ela sai de campo, é sair correndo atrás, não sem antes lançar outra nova para dentro —o espetáculo tem que continuar.
A contrapartida é sentir o jogo, mais do que assistir. A vivência dos gandulas resulta em muitas histórias.
“Sempre foi um privilégio. Meu lugar estava garantido nos momentos mais emocionantes do Corinthians. Títulos, Libertadores... Eu me sinto parte disso”, diz Lucas Conceição dos Santos, 33 anos, que durante a maior parte de sua existência viveu de pertinho tudo que o Corinthians passou nos últimos 19 anos.
Aos 14 anos ele começou a desempenhar a função. Primeiro, nas categorias de base do Timão e, pouco tempo depois, no profissional. Filho e irmão de gandulas, o amor por trabalhar à beira do campo vem da família.
Em 2012, na campanha que resultaria no título alvinegro na Copa Libertadores, Lucas protagonizou um momento curioso durante a partida com o Santos, na volta das semifinais, em uma noite chuvosa no estádio do Pacaembu.
O volante Adriano, do Peixe, empurrou Lucas para acelerar a reposição da bola. O gandula caiu no chão e teve algumas escoriações.
“Na hora quase me deu uma crise de risos, porque eu fiquei pensando na minha mãe vendo aquilo na TV e pensando que era o filho dela. Mas a paixão falou mais alto que o trabalho naquele dia. Na verdade, foi uma incompatibilidade de interesses quando eu segurei a bola. O santista estava com mais pressa do que eu”, brinca. Adriano pediu desculpas depois.
Dias depois, na final contra o Boca Juniors, Lucas comprou uma faixa de “Corinthians campeão” em frente ao Pacaembu antes do jogo. Quando o estádio alvinegro explodiu em felicidade ao conquistar o título inédito de dono das Américas, o gandula saiu correndo em direção ao técnico Tite e colocou nele a faixa que havia comprado.
Nisso, Tite o chamou e falou: “Essa é sua, você acompanhou a gente o caminho todo”, repassando o adereço a Lucas. Entre os muitos momentos que lembra com carinho, conversando com a reportagem do Agora, esse foi o mais especial.
No dia 21 de abril deste ano, Lucas ganhou um presente especial de aniversário. Com gols de Danilo Avelar e Vagner Love, o Timão derrotou o São Paulo por 2 a 0, e conquistou o tri no Campeonato Paulista.
A celebração dos seus 33 anos foi dupla, comemorando o caneco ao lado do gramado de um Itaquerão lotado, com toda a torcida alvinegra em festa.
De briga com Zetti a abraços em Felipão
Leonardo Brancaccio, 57 anos, tem as quartas e domingos como dias sagrados. Há 26 anos o compromisso do gandula é com o Palmeiras. Já foram 838 jogos na beira do gramado e outros tantos ainda por vir —seus quatro filhos contam com orgulho aos colegas que o pai é o gandula mais antigo nos duelos do Alviverde.
Tudo começou em 1993, quando um primo o chamou para ajudar enquanto ele tomava sol na piscina do clube. Foi, e não parou mais.
Entre as lembranças estão as épicas, como a conquista da Libertadores de 1999, e as sofridas, como a virada por 4 a 3 do Vasco na Copa Mercosul de 2000.
Desde cedo, aprendeu a lidar com a pressão. Além de xingamentos a cusparadas, os aborrecimentos por causa da velocidade na reposição da bola são recorrentes.
Em 1997, Leonardo teve um conflito com Zetti, à época, goleiro do Santos, no antigo Parque Antarctica.
Djalminha havia dado um de seus clássicos chutes: olhando para um lado, mirando em outro. Dessa vez, não deu certo e a bola saiu pela linha de fundo. O Palmeiras vencia a partida e, por isso, o camisa 1 do Peixe tinha pressa. Pressionou o gandula na reposição da bola. Leonardo, por sua vez, aguardava a saída total do campo. Nisso, começou uma troca acalorada de ofensas entre os dois, com promessas de briga depois que o jogo acabasse.
O gandula acabou expulso daquele clássico e levou seis jogos de gancho. A surpresa veio no reencontro.
“Um ano depois, eu o reencontrei em mais um Palmeiras e Santos. A bola saiu, eu fui rolar para o campo e ele me viu e me reconheceu. Quando veio em minha direção, achei que fosse apanhar, ele estava tirando as luvas... Mas aí ele me abraçou, eu o abracei e pedimos desculpas pela reação daquele outro dia”.
Leonardo lembra com carinho do momento mais emocionante à beira do gramado alviverde.
Em 1999, na final da Libertadores, ele e os colegas estavam atrás do gol oposto ao que ocorria a disputa de pênaltis contra o Deportivo Cali (COL). Quando o último chute, de Zapata, foi para fora, em meio aos gritos ensurdecedores da torcida, o técnico Felipão cruzou o gramado em direção aos gandulas e os abraçou, celebrando a conquista inédita com eles. Algo que ele nunca vai esquecer.
Mulheres lidam com cantadas e machismo
Em cinco anos como gandula da FPF (Federação Paulista de Futebol), Mariana Pereira, 30 anos, já viu de perto muitos craques. Neymar, Dani Alves, Coutinho...mas é um jogo da Série A-2 do Campeonato Paulista que ficou guardado.
Foi nas semifinais de 2017, em Diadema, entre Água Santa e Bragantino. O árbitro Luiz Flávio de Oliveira escorregou e sofreu uma entorse e deixou o campo de ambulância. Além disso, o jogo foi para os pênaltis e os nervos ficaram à flor da pele.
Mariana relembra que o estádio era pequeno, quase sem divisão entre o gramado e a torcida.
“Os seguranças começaram a falar que nós teríamos que ficar espertas porque se o time da casa perdesse, a situação ficaria tensa. Era tudo colado mesmo, dava até para se apoiar na mureta onde os torcedores ficavam. No fim, não teve confusão. Mas para sair de van sofremos, jogaram coisas contra o veículo”.
Nos estádios, ela teve que ter sangue frio para ignorar cantadas, provocações e gritos machistas questionando o porquê de estar lá. O motivo? Para ela, a ligação tão íntima com o futebol sempre foi uma forma de enfrentamento e ocupação de espaços pela mulher.
Travessuras históricas dos gandulas
Alguns casos em que os pegadores de bola criaram confusão em campo:
Campo Limpo 1 x 1 Rio Claro
Campo Limpo Paulista (SP)
Série B-2 do Paulista 2000
Quando o placar ainda apontava 0 a 0, o atacante Testa, do Rio Claro, invadiu a área, driblou o último zagueiro e o goleiro e rolou a bola para o gol. O gandula atrás da meta correu para o gramado e deu uma bica na bola, afastando o perigo
Santacruzense 1 x 1 Atlético Sorocaba
Santa Cruz do Rio Pardo (SP)
Copa Paulista 2006
O Atlético Sorocaba vencia a partida por 1 a 0 até os 44min do segundo tempo. Após chute do lado de fora da rede, o gandula Canhoto, sutilmente, tocou a bola de lado para dentro do gol. A árbitra Silvia Regina e seu auxiliar validaram a jogada e o duelo terminou 1 a 1
São Bento 0 x 3 Palmeiras
Sorocaba (SP)
Campeonato Paulista 2007
Um gandula de Sorocaba foi trabalhar com uma camisa do São Bento e outra do Corinthians por baixo do colete e passou a provocar os torcedores palmeirenses, além de retardar a reposição de bola para os visitantes. O quarto árbitro percebeu e acabou o expulsando
São Paulo 1 x 2 Flamengo
São Paulo (SP)
Campeonato Brasileiro 2011
Em outubro de 2011, o São Paulo foi denunciado no STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) —após um gandula ser expulso contra o Flamengo— por seus pegadores de bolas retardarem a reposição de bola ao goleiro adversário, nos jogos no Morumbi, quando Rogério Ceni deixava o campo defensivo para cobrar faltas
Botafogo 3 x 1 Vasco
Rio de Janeiro (RJ)
Campeonato Carioca 2012
Na decisão da Taça Rio, Fagner isolou a bola para a lateral para evitar o contragolpe do Botafogo, mas a gandula Fernanda Maia, atenta, repôs a bola rapidamente nas mãos de Maicosuel, que cobrou nas costas de Fagner e abriu o caminho para o primeiro gol
Guarany-SE 0 x 1 Sergipe
Porto da Folha (SE)
Campeonato Sergipano 2012
Em busca do empate, já nos acréscimos, o Guarany teve até seu goleiro na área do Sergipe em cobrança de escanteio. A bola, porém, ficou com os visitantes, que puxaram o contragolpe. Com apenas um zagueiro por perto, Lima chutou para o gol vazio. Insatisfeito com a atuação do árbitro, que havia anulado um gol do Guarany, o gandula Rinha, correu para o campo e tirou a bola em cima da linha
Swansea 0 x 0 Chelsea
Swansea (GAL)
Copa da Liga Inglesa 2012/13
O poderoso Chelsea precisava vencer o Swansea para avançar e, no final, o gandula Charlie Morgan se recusou a devolver a bola para o campo. Ele levou um chute de Eden Hazard, o craque do time londrino, que foi expulso e minou a chance da vitória. Meses depois, Morgan ainda vendeu na internet a jaqueta que usou naquele dia com seu autógrafo
Grêmio Osasco 3 x 2 Juventus
Osasco (SP)
Segunda Divisão do Paulista 2013
Empolgado com o terceiro gol do time comandado por Vampeta, um gandula subiu no alambrado para comemorar e deu cambalhotas na lateral do campo. Depois de expulso, invadiu o campo para rolar na grama e saiu correndo fazendo aviãozinho, irritando a arbitragem e os atletas do Moleque Travesso
Botafogo-SP 0 x 2 Palmeiras
Ribeirão Preto (SP)
Campeonato Paulista 2016
Após se dirigir a um jogador do Palmeiras, um gandula foi advertido pelo árbitro Marcelo Aparecido de Souza e ironizou: "Aqui eu vou trabalhar do meu jeito. Vocês apitam aí, e eu aqui". Ele acabou expulso e só deixou o campo retirado por um fiscal
José Bonifácio 0 x 2 Manthiqueira
José Bonifácio (SP)
Segunda Divisão do Paulista 2017
Para tentar evitar o segundo gol do Manthiqueira, com o goleiro do José Bonifácio já batido por um chute de cobertura, nos acréscimos, o gandula Costinha invadiu o campo e tentou agarrar a bola, mas furou e a redonda passou entre seus braços, morrendo no fundo da rede
Barretos 3 x 1 Noroeste
Barretos (SP)
Série A-3 do Paulista 2018
Enquanto o Noroeste martelava em busca do empate -o placar apontava 2 a 1-, com a torcida barretense angustiada na arquibancada, o gandula tranquilamente falava ao telefone celular em vez de repor as bolas com agilidade, sendo expulso pelo árbitro
Tottenham 4 x 2 Olympiacos
Londres (ING)
Liga dos Campeões 2019/20
O Tottenham perdia por 2 a 1, quando o gandula repôs rapidamente a bola para a cobrança do lateral, que encontrou Lucas. O brasileiro arrancou livre e cruzou para Harry Kane igualar. Os ingleses viraram para 4 a 2 e o garoto ganhou até um abraço do técnico José Mourinho