Escola da periferia de São Paulo vira referência em inclusão social
Cieja da zona sul da capital paulista substitui mesas individuais por redondas e inspira livro
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Uma escola pública municipal com a cara da comunidade e de portas escancaradas das 7h30 às 22h30, de segunda a sexta-feira. Logo na entrada do longo corredor arborizado, com trepadeiras floridas, uma faixa pendurada: “Que bom que você está aqui”.
Assim são recebidos os 1.437 alunos do Cieja (Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos) Campo Limpo, no Capão Redondo, periferia da zona sul de SP.
Criada em 1998, a unidade escolar se transformou em referência de inclusão ao criar modelo baseado no respeito e no acolhimento. E tem sua história contada em livro.
Na época, a região tinha identidade marcada pela violência. Mas isso não foi o suficiente para assustar a pedagoga, especializada em educação de jovens e adultos, Eda Luiz.
“Eu abri os portões. Resolvi confiar do que ter medo”, diz Eda, a primeira coordenadora-geral da escola e que permaneceu na função até julho de 2018, quando se aposentou.
A princípio, ela ouviu os adolescentes. Eles lhe pediram inicialmente uma escola sem carteiras. Depois viriam outras sugestões, como portões abertos, sem alarme e discussão do conteúdo pedagógico.
A educação de jovens e adultos ganhava uma nova identidade. As carteiras tradicionais que chegaram foram devolvidas e substituídas por mesas redondas.
“A gente aprende no coletivo”, afirma Eda, que se baseia nos ensinamentos do educador brasileiro Paulo Freire (1921 - 1997).
A partir dos adolescentes, chegaram os jovens em busca de qualificação, as mães que abandonaram os estudos, as mulheres separadas, os homens desempregados e os idosos na busca de um tempo perdido.
Caso da diarista Maria Cleusa Ribeiro, 60 anos, que se formará em dezembro no fundamental 2. “Era o sonho da minha vida concluir os estudos. Quero fazer faculdade de pedagogia”, conta, feliz, a aluna do período noturno e moradora do Jardim Vaz de Lima, no distrito do Jardim São Luis (zona sul).
Livro
A metodologia de trabalho na formação de jovens e adultos do Cieja Campo Limpo foi contada no livro digital do programa Escolas Transformadoras.
A publicação, intitulada “Criatividade - Mudar a Educação, Transformando o Mundo”, foi lançada em junho pelo Instituto Alana, em parceria com a Ashoka, organização social sediada nos Estados Unidos e presente em aproximadamente 30 países.
“O Cieja Campo Limpo criou um jeito especial de fazer educação para jovens e adultos com acolhimento, inclusão e criatividade”, afirma a pedagoga Raquel Franzim, 39 anos, uma das coordenadoras do Escolas Transformadoras no Brasil.
A educadora cita as mesas coletivas que implicaram, inclusive, na mudança no processo de compra do mobiliário pela Prefeitura de São Paulo. “Ninguém aprende sozinho”, ressalta.
A história do Cieja integra um dos 16 textos da publicação. A professora Eda Luiz é quem conta como uma escola pode ser também solução de problemas de diferentes formas.
O Cieja da periferia da zona sul de São Paulo transformou a vida da costureira Ivanilde da Silva, 50 anos, ficou traumatizada aos 8 anos, quando, no terceiro dia de aula em uma escola pública de Guararema (79 km de SP), a professora a colocou para fora da sala de aula porque a menina, que tinha cinco irmãos, estava descalça e com os dois pés empoeirados.
“Eu andava quatro quilômetros da terra até chegar à escola. Falei que meu pai ia arrumar o dinheiro, mas não adiantou”, conta.
Há dois anos, a ex-babá e hoje mãe chegou ao Cieja para realização de um sonho enterrado no passado: ler e escrever. “Aqui eu descobri o que me roubaram. É uma escola que pega todos os quebrados e feridos, cura, e se orgulha das cicatrizes”, diz a aluna Ivanilde, em tom poético, e que se formará em dezembro.
Mudança
Desconhecida no Maranhão, estado onde nasceu 40 anos atrás, para as passarelas da moda na capital paulistana. É mais ou menos assim a história de Rosailde Pinheiro Reis, ex-aluna do Cieja Campo Limpo, conhecida como Rosa Flor.
“Tive muitas portas fechadas na cara e bati muito a cabeça, quando cheguei em São Paulo”, inicia a conversa, desenfreada, atropelando as palavras para contar sua trajetória de vida.
Quem vê Rosa Flor falar hoje não imagina que, em algum momento, foi uma mulher tímida. “Nossa, eu tinha medo de falar”, diz.
A mudança, inclusive no seu comportamento, tem um nome. “O Cieja foi a transformação na minha vida. Fui recebida de portas abertas, aceita. Só tenho gratidão. Aqui comecei a minha moda”, diz.
Rosa Flor não só virou sua identidade como sua grife. Depois de passar por oficinas de estêncil em tecido, customização e corte e costura, a hoje modista Rosa Flor está registrando sua marca de roupas e acessórios com materiais reciclados.
Só o curso de modelagem fez na USP (Universidade de São Paulo). Camisetas e saias em pedrarias customizadas fazem parte da coleção.
Fora os brincos, colares e pulseiras com materiais reaproveitados, inclusive tecidos. Uma das bolsas feitas com a caixinha do leite revestida em chita florida.
Mas é o avental de jeans, com tecido de guarda-chuva velho, que atraiu uma cliente do Morumbi (zona oeste). “Ela me pagou R$ 30”, conta, em êxtase, a moradora do Capão Redondo.
O pedagogo Billy de Assis, 54 anos, educador comunitário no Cieja, contribuiu na trajetória de Rosa Flor. “Aprendi aqui a valorizar as pessoas com suas diferenças”, diz.
Biblioteca
A professora aposentada Eda Luiz, com 54 anos de escola pública entre município e estado, dá o nome à biblioteca do Cieja Campo Limpo —que também fica aberta à comunidade.
A escolha do nome partiu dos próprios alunos quando da inauguração em 2009, com direito à campanha, eleição e votos.
O acervo com quase 8.000 itens catalogados foi cedido pelo Give (Grupo Itinerante de Voluntariado Elementar), responsável pela instalação da biblioteca pública.
Na época, Eda Luiz competiu com candidatas fortes, como as poetisas brasileiras Cora Coralina e Adélia Prado. O único homem da lista da escola era do brasileiro tricampeão de Fórmula 1 Ayrton Senna.
Mesmo sem campanha, Eda teve mais do que o dobro dos votos. “A gente tem de homenagear quem faz o corre com a gente”, diz Eda, aos risos, ao relatar o que ouviu de um dos alunos.