Coronavírus obriga famílias a enterrar seus parentes à noite em SP
Ausência de velório para quem morreu infectado, ou cerimônia rápida em outros casos, virou regra
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Velórios com tempo reduzido drasticamente, ou inexistentes, filas para notificar mortes em funerárias, famílias inteiras morrendo em pequenos intervalos, enterros no período noturno, são algumas mudanças de rotina pontuadas por profissionais da área fúnebre, ouvidos pelo Agora, ocorridas após o início da pandemia do novo coronavírus.
Desde o último dia 25, o cemitério da Vila Alpina e mais três necrópoles começaram a realizar enterros noturnos na capital paulista, até às 22h, por causa do aumento de sepultamentos registrados na cidade.
Segundo boletim da gestão Bruno Covas, ocorreram 9742 sepultamentos em março, representando aumento de 63,3% em relação ao mês anterior, com 5964. Agora em abril, até terça-feira, foram computados 1968 sepultamentos.
A prefeitura afirmou não contabilizar os enterros noturnos separadamente dos demais e, por isso, não soube informar quantas corpos foram sepultados de noite desde que a medida entrou em vigor.
De mãos dadas, cinco parentes próximos do empreiteiro Gilberto Silva e Souza, 70 anos, rezaram um Pai-Nosso ao lado do carro em que estava o caixão com o corpo, por volta das 21h30 de terça-feira (6), no Cemitério São Bento, na Vila Alpina (zona leste).
Logo em seguida, o caixão foi colocado em um veículo de transporte da necrópole e levado até a quadra 101, onde Souza foi enterrado. Ele morreu por causa da Covid-19, no mesmo dia de seu enterro, por volta das 9h, após permanecer 18 dias intubado no Hospital Municipal Vila Santa Catarina (zona sul), local onde trabalha sua filha, a enfermeira Gisele Anselmo e Souza, 39.
“Falei, antes da intubação, que ele iria dormir [por causa da medicação]. Meu pai só pediu para não sentir dor. As últimas palavras ditas por ele foram ‘que seja feita a vontade de Deus’.”
A reportagem também acompanhou o enterro da dona de casa Adriana Alencar, 47 anos, que morreu por causa de uma embolia pulmonar, deixando quatro filhos, com idades entre 10 e 24 anos.
Diferentemente do idoso, seus familiares puderam velar o corpo de Adriana por aproximadamente uma hora, antes do enterro, ocorrido por volta das 20h50, na mesma quadra em que o empreiteiro foi sepultado posteriormente.
O técnico em mecânica André Alencar, 40, irmão da dona de casa, afirmou que, diante da atual realidade da pandemia da Covid-19, a família se sentiu grata ao poder se despedir da ente querida. “Pelo menos pudemos dar o último adeus para ela, fomos privilegiados, pois as famílias de quem morre de coronavírus não podem fazer isso”, destacou.
Ambos os enterros acompanhados pelo Agora contaram com a presença de uma viatura da GCM (Guarda Civil Metropolitana). Para que os sepultadores conseguissem ver as covas, uma torre de iluminação foi usada. Após os enterros, os coveiros também foram vistos pela reportagem trocando imediatamente seus macacões de proteção, jogando os usados fora, em um saco.
Drama
Mesmo acostumados a lidar cotidianamente com a morte, o aumento diário de óbitos provocados pela Covid-19, aliado à falta de perspectiva atual de melhora desse cenário, também tira lágrimas literalmente de trabalhadores de funerárias e de velórios.
Eduardo Barros, diretor de uma das maiores funerárias de São Paulo, comentou sobre filas de parentes, que se formam na funerária, além do testemunho de mortes em sequência de um mesmo núcleo familiar.
“Famílias estão voltando, em um curto espaço de tempo, para fazer o velório da mãe, do tio, depois do filho. Vejo uma mesma família voltando para cuidar da documentação de parentes diretos”, relatou.
Barros não conseguiu velar o próprio pai, de 68 anos, morto em novembro do ano passado por causa do novo coronavírus.
“É difícil acreditar que a pessoa foi andando para o hospital, dando tchau, e saiu de lá dentro de um caixão”, afirmou. “E sem velório, fica tudo diferente. Parece que não fecha o ciclo, ainda mais que não dá para ver a pessoa [com o caixão aberto]. Isso é algo irrecuperável”, disse.
Ele acredita que o pai se infectou com o vírus quando saiu de casa uma única vez, desde que iniciou o distanciamento social, para levar sua gata de estimação ao veterinário.
Barros afirmou que os atendimentos dobraram na empresa com o início da pandemia. Antes de ela começar, a funerária preparava uma média de 50 corpos por dia, nas regiões do ABC e Sorocaba (99 km de SP). Atualmente, porém, ocorrem cerca de 100 atendimentos diários, que podem chegar a até 130.
“Deste total, nos últimos meses, entre 35% e 40% foram vítimas da Covid”, pontuou o diretor, que trabalha há quase 20 anos na área.
“Nossa rotina mudou a partir do momento em que fomos obrigados a impedir famílias de fazer a última despedida, no caso de mortos pelo coronavírus”, afirmou Barros, se referindo a determinação da Vigilância Sanitária para que os corpos de vítimas da Covid-19 não sejam velados.
'Há outro universo de mortos fora do coronavírus'
O presidente da Abredif (Associação de Empresas e Diretores do Setor Funerário), Lourival Panhozzi, afirmou que o aumento de mortes em decorrência da Covid-19 repercutiu na dinâmica dos trabalhos em cemitérios, ressaltando também que "as pessoas morrem por outros motivos”. “Há um outro universo de mortos fora do coronavírus, é necessário tratar estes casos de outra forma, com outro peso”, avaliou.
Ele diz isso se referindo à rapidez com que corpos, de mortos por outros motivos que não o novo coronavírus, estão sendo velados desde o início da pandemia. “Quem não perde um ente querido para a Covid-19, tem o direito sagrado de sepultar seu familiar de forma respeitosa. Estão descartando corpos e não sepultando pessoas [atualmente]”, criticou.
Sobre o aumento de óbitos em São Paulo, de uma forma geral, ele afirmou se preocupar com o número de vagas nos cemitérios da capital paulista. Caso não houver algum planejamento, o presidente acredita que as pessoas começarão a ser enterradas em valas comuns.
“Precisa de um planejamento entre as prefeituras da capital e Grande São Paulo. Isso pode garantir sepultamentos dignos e, após um tempo, a família pode transferir os restos mortais para onde bem entender.”
Ele também afirmou já ter testemunhado funcionários de funerárias chorando, em decorrência da alta carga emocional e da “energia emanada” por familiares que perdem parentes para o vírus.
“Essa energia é muito intensa. Nunca tinha visto, mas agora não são raras as vezes em que funcionários de funerária são pegos chorando juntos. Estão sendo impactados e não sei a herança que vai ficar deste momento, ninguém pode precisar isso ainda.”
Resposta
A Prefeitura de São Paulo, gestão Bruno Covas (PSDB), afirmou por meio do Serviço Funerário do Município contar atualmente com 398 sepultadores na cidade, sendo 173 efetivos e 225 contratados entre 2020 e o início deste ano, por causa da pandemia da Covid-19.
As mais recentes contratações temporárias ocorreram em 26 de março deste ano, com 50 sepultadores incluídos no quadro de funcionários, para atuarem nos enterros noturnos, que ocorrem nos cemitérios São Luiz (zona sul), Vila Nova Cachoeirinha (zona norte) São Pedro, conhecido como Vila Alpina, e da Vila Formosa, ambos na zona leste.
A reportagem solicitou entrevistas, por telefone, com funcionários do sistema funerário administrado pela prefeitura. O governo, porém, não as permitiu. " No momento, por conta da fase emergencial, todas as entrevistas estão suspensas", argumenta em trecho de nota.
Na quarta-feira (7), o secretário Municipal das Subprefeituras de São Paulo, Alexandre Modonezi, afirmou que o serviço funerário pretende abrir 600 valas diariamente para dar conta do aumento no número de mortos por causa da Covid-19. Ele também disse que a gestão Bruno Covas pretende construir, em 90 dias, 26 mil sepulturas verticais no cemitério de Itaquera (zona leste).