Moradores da periferia de São Paulo fazem cinema na pandemia

Produções têm temas variados e são feitas por quem quer contar as próprias histórias nas telas

São Paulo

Durante esta pandemia, casas e bairros estrearam como sets de filmagens. Produtores audiovisuais das periferias da capital paulista e região metropolitana têm contado suas histórias em formato de ficção poética, documentário e curta-metragem. A rotina diante do novo coronavírus, a desigualdade e o genocídio da juventude negra são exemplos das temáticas abordadas nos filmes.

Pares de tênis pendurados na rede elétrica é a primeira imagem de “Pipa”, ficção poética dirigida e roteirizada por Juliana Jesus, 28, que é poeta, iluminadora e “sevirologista” (conforme sua própria definição, é quem “se vira” em qualquer condição). O texto que dá nome ao filme foi feito em 2016, após a perda de um amigo apelidado de “Pipa”, que marcou bastante a comunidade onde Juliana vive, no Jardim Miriam (localizada em Itaim Paulista, zona leste de SP).

A ideia só saiu do papel em 2020 ao ser uma das duzentas contempladas pelo projeto “Curta em Casa”, realizado pelo Instituto Criar e Projeto Paradiso e patrocinado pela ​Spcine. A iniciativa destinou R$ 3.000 para a criação de curtas por profissionais das periferias. O elenco de “Pipa” é formado pela família e alguns amigos próximos da poeta.

“A oportunidade que eu teria de participar de algo assim era quase zero”, afirma Eliane de Jesus dos Anjos, 36, dona de casa e prima de Juliana. “Pipa” é a sua primeira participação como atriz e ela afirma que o resultado é gratificante. “Essa produção abriu minha mente no sentido de que a gente pode sair da plateia e subir no palco". Segundo Eliane, o trabalho é muito bonito, mas também é triste e atual. “Tem muitos ‘pipas’ que só precisavam de uma oportunidade, mas não tiveram”, comenta.

Juliana explica que a poesia periférica é uma forma de registro. Transformar essa história em filme é uma forma de mostrar que essas pessoas e memórias não serão esquecidas. Ela conta que tem se surpreendido com o alcance do trabalho e recebido diversas mensagens de identificação.

Para ela, produzir arte na periferia é criar imaginários. “A produção consegue materializar o que a gente espera do mundo, que os nossos não sejam mortos e que as crianças sejam o que elas imaginarem” afirma. No futuro, Juliana pretende transmitir o curta na rua em que mora e disponibilizá-lo para escolas públicas.

Pandemia no roteiro

“Após um mês [de isolamento] a gente recebeu a notícia que minha tia tava com suspeita de coronavírus. Isso deixou a gente bem abalado”, conta o produtor audiovisual Douglas Cordeiro, 26, responsável pela direção e montagem do filme “E daí?”. A produção conta a rotina de uma família após descobrir que um parente está com Covid-19.

O produtor audiovisual Douglas Cordeiro, 26, responsável pela direção e montagem do filme “E daí?”, tem recebido retornos positivos e mensagens emocionadas pelo curta-metragem. - Douglas Cordeiro | Arquivo Pessoal

Depois que a tia de Cordeiro se recuperou, ele resolveu transformar essa história em filme. O título faz referência a uma fala do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no momento em que a mãe do produtor estava muito preocupada com a saúde da irmã, que mora em Itapetim (PE) a mais de 2.000 quilômetros da família de Suzano (Grande SP). “Ele tava falando ‘E daí?’ para a minha tia, para minha família”, comenta.

Em uma semana, o produtor escreveu o roteiro, encenou com os pais, gravou e editou. Tudo foi feito dentro de casa e contou com a participação da tia à distância. “Minha mãe é atriz de teatro, mas fazia tempo que não atuava”, diz.

No início da pandemia, a fotógrafa e produtora audiovisual Naná Prudencio, 31, estava participando ações em favelas para entregar doações e conseguir recursos, mas sentiu que precisava fazer mais. “Você dá a cesta, mas ela não tem o gás”, exemplifica, sobre a amplitude do problema.

Naná decidiu fazer um documentário para que as pessoas pudessem contar suas histórias. A temática também visa mostrar que esses problemas não acontecem apenas devido ao coronavírus, mas sim à desigualdade, justificando o título de “Pandemia do sistema: o retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil”.

Ao todo, o documentário entrevista 22 pessoas entre moradores, voluntários e lideranças de favelas de Taboão da Serra (Grande SP) e das zonas norte, leste e sul da capital paulista. “Em todos os lugares vi e senti essa energia de que 'nóis só tem nóis'”, conta.

“Esse documentário vai fazer as pessoas refletirem que essa miséria não vem de hoje e a favela sabe por que essa miséria existe”, afirma Naná. Moradora de Taboão da Serra, ela tem trabalhado com o audiovisual em periferias há cinco anos. “Não sei como me sentiria se não tivesse fazendo nada por onde atuo e somando com a quebrada”, diz.

Primeira vez na frente das câmeras

A dona de casa Raimunda Boaventura, 57, mora em Taboão da Serra e é uma das entrevistadas no documentário “Pandemia do sistema”. Nestes 40 anos em que vive no bairro do Jardim Leme, é a primeira vez que ela vê um filme sendo gravado ali.

“Achei interessante porque a gente pode expor um pouquinho do que a gente vive”, afirma. Foi a primeira vez que ela participou de uma produção. De certa forma, também realiza o sonho de um dos netos, que gostaria de ser ator, mas não conseguiu devido às condições financeiras da família. No tempo livre, Raimunda costuma criar histórias e peças de teatro. “Tenho coisas escritas que gostaria de ver em público”, conta.

Para Raimunda, o filme pode gerar novas oportunidades para os moradores da comunidade e mudar a visão das pessoas que não conhecem essa realidade. A pandemia tem sido um momento difícil para a família, que não tem espaço para seguir o isolamento caso alguém fique doente. Além disso, ela conta que as gravações seguiram os cuidados de prevenção da Covid-19, com distanciamento e uso de máscara.

Oportunidade de contar a própria história

“Essa galera que é de quebrada e está produzindo audiovisual muitas vezes é a primeira pessoa da família a começar uma faculdade”, afirma Renato Candido de Lima, cineasta, professor, vice-presidente da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) e doutorando pela Universidade de São Paulo.

Ele explica que nas gerações anteriores, a população negra, indígena e de periferia não conseguia acessar mecanismos de produção e recursos financeiros do audiovisual, em geral. “Se a gente observa como se financia o audiovisual no Brasil, vê uma das caras do racismo estrutural”, diz.

Com o aprendizado, Renato explica que em vez de essas pessoas formarem mão de obra para o setor, elas também “entenderam que precisam contar suas histórias”. Além disso, quando o movimento negro propõe ações afirmativas (como cotas e editais específicos para estas populações, por exemplo) é uma forma de reivindicar a participação no Estado. No audiovisual, a representação de pessoas e espaços periféricos permite que as histórias sejam contadas e retratadas dignamente.

Atualmente, Renato afirma que a falta de recursos financeiros, a desigualdade e o racismo são problemas presentes. Ao mesmo tempo, ele menciona que há discussões sobre como criar políticas públicas de maneira estrutural. Durante esta pandemia, iniciativas como o Fundo de Amparo aos Profissionais do Audiovisual Negro da APAN e a lei Aldir Blanc, que fornece auxílio financeiro para artistas são exemplos. “As pessoas têm se mobilizado e proposto ações muito interessantes”, finaliza.

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Onde assistir?

Pipa
Ficção poética homenageia “pipas” de todas as quebradas. Em cinco minutos, o curta utiliza a memória falada para eternizar as pessoas e sua importância.
Direção: Juliana Jesus
Assista aqui

E daí?
Em seis minutos, curta mostra a rotina de uma família em meio a pandemia ao descobrir que um parente está com Covid-19.
Direção: Douglas Cordeiro
Assista aqui

Pandemia do sistema: O retrato da desigualdade na capital mais rica do Brasil
Documentário mostra como moradores de diferentes periferias se organizaram para enfrentar a pandemia de Covid-19 e que “a desigualdade é a epidemia mais antiga, grave e crônica na história brasileira”.
Direção: Naná Prudêncio
Assista o teaser aqui
Lançamento: 4 de agosto às 19h na página de Facebook Alma Preta

200 curtas disponíveis
O “Curta em Casa” é um projeto que fomentou a realização de curtas-metragens, que refletem o momento da pandemia, por profissionais do audiovisual das periferias de São Paulo. A iniciativa é resultado da parceria do Instituto Criar com o Projeto Paradiso e patrocínio da ​Spcine.
Assista aqui

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