A Polícia Federal cumpriu, na manhã desta quinta-feira (21), 22 mandados de busca e apreensão na capital paulista e em três cidades da Grande SP, por causa de suspeitas de desvios de recursos destinados a CEIs (Centros de Educação Infantil) e creches.
As instituições, segundo a PF e Receita Federal, eram geridas por OSCs (Organizações da Sociedade Civil). Ao todo, o bando desviou mais de R$ 14 milhões, também de acordo com a Polícia Federal. Ninguém foi preso.
Segundo o delegado Marcelo Ivo De Carvalho, da Delegacia Regional de Investigação e Combate ao Crime Organizado, a PF identificou irregularidades em cinco escritórios de contabilidade, contratados pela Prefeitura de São Paulo, gestão Bruno Covas (PSDB), que prestavam contas ao governo municipal sobre as compras feitas para 560 creches que têm mais de 70 mil crianças matriculadas, com idades entre zero e 3 anos.
A gestão Covas diz em nota ter ampliado o controle interno e a fiscalização às organizações conveniadas à Secretaria Municipal da Educação.
A investigação, que apura ações do grupo entre 2015 até o momento, aponta que parentes e funcionários ligados aos escritórios recebiam dinheiro de compras superfaturadas de itens alimentícios e de serviços em geral. Um dos “laranjas” do esquema, segundo a polícia, conta com patrimônio de cerca de R$ 24 milhões, mas vive em uma casa humilde. O número total de investigados não foi informado pela polícia.
“Objetivando obter e potencializar vantagens econômicas com as atividades de apoio prestadas, os escritórios de contabilidade passaram a simular despesas e se apropriar dos valores repassados pelo ente público [com subsídios da União] para fazer frente a tais despesas inverídicas”, diz trecho de nota da PF.
As prestações de contas à Prefeitura de São Paulo, ainda conforme a PF, eram feitas com documentos “falsificados de forma grosseira.”
A simulação de despesas, segundo a investigação, era feita de duas formas pelos suspeitos. Uma delas corresponde a contribuições sociais devidas à União, relacionadas ao emprego de mão de obra nas creches, e, a outra, à compra de materiais didáticos, de papelaria e gêneros alimentícios.
Com o cruzamento de informações dos processos de prestações de contas, apresentadas à Prefeitura de São Paulo pelos escritórios investigados, a PF e Receita Federal constataram 1.119 fraudes sobre valores, feitas com documentos falsos, totalizando, até o momento, R$ 14.229.486,49 de valores desviados, segundo a polícia.
Esta cifra milionária corresponde às despesas declaradas à gestão municipal como executadas, ainda de acordo com a PF, mas que não tiveram os valores recolhidos.
Além dos escritórios, a investigação identificou oito fornecedores, responsáveis por 26,95% das compras feitas para creches da capital paulista, registradas em nome de laranjas (parentes e empregados dos investigados). A polícia constatou que os fornecedores são empresas fantasmas.
“Ademais, as creches são destinatárias de 92,58% das vendas realizadas por essas fornecedoras e os valores das mercadorias revendidas superam em nove vezes o valor das aquisições feitas pelas fornecedoras”, diz ainda a PF.
Foram cumpridos por 85 policiais federais e nove servidores da Receita Federal 17 mandados de busca e apreensão na capital paulista, três em Mogi das Cruzes, e um em Santana de Parnaíba e Itaquaquecetuba, em endereços ligados aos investigados.
A 8ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo suspendeu os convênios e repasses firmados com 36 OSCs, além de sequestrar bens como veículos de luxo, imóveis em condomínios fechados e mais de R$ 14 milhões depositados em contas bancárias, provenientes dos supostos desvios.
Os suspeitos são investigados pelos crimes de peculato (usar dinheiro público para benefício próprio), falsificação de documentos públicos e particulares, sonegação de contribuição previdenciária e associação criminosa.
Nenhum funcionário público ou gestor do governo municipal foi identificado durante a investigação.
Investigação
A operação da Polícia Federal mira os mesmos alvos de outra ação, realizada por policiais civis do 10º DP (Penha, na zona leste).
Batizada de Misantropia, a ação também se baseou em reportagens da Folha de S.Paulo sobre a indústria das creches conveniadas na cidade que, embora sejam mantidas por instituições sem fins lucrativos, possuem donos e dão lucro por meio dos desvios.
Um dos principais pontos do esquema descoberto consiste no uso de notas frias. Pelo esquema, as empresas vendem produtos só no papel que, em vez de ir parar nas escolas, têm a verba desviada.
Um dos exemplos usados pelos policiais está em uma papelaria que, estranhamente, vende carne para as escolas. Em quatro anos, ela comprou R$ 11 mil em produtos, mas vendeu quantias superiores a R$ 9 milhões.
A reportagem da Folha esteve em alguns desses endereços. Há casos de lojinhas de bairro, praticamente sem produtos nas prateleiras, que são fornecedoras de organizações que atendem milhares de alunos.
Outro ponto que chama a atenção é a distância dessas lojas das escolas. A reportagem encontrou comércios de bairro na zona leste que vendem produtos a escolas no extremo sul, o que, em tese, geraria custos com transportes para comprar de empresas que, pelo seu tamanho, teriam maior dificuldade em oferecer bons preços.
A investigação descobriu que, em alguns casos, os próprios contadores utilizam laranjas para dirigir as entidades. Esses mesmos escritórios usam também empresas de fachada, também em nome de laranjas que, muitas vezes, são seus funcionários ou parentes.
Os "donos" das creches levam vidas luxuosas, em apartamentos de alto padrão e com carros caros --alguns deles apreendidos pela Polícia Civil, antes da operação da PF.
As creches sofrem ainda grande influência de políticos, que indicam cargos nas diretorias de ensino, responsáveis por investigar o esquema.
A polícia localizou um homem, por exemplo, que atuava em uma diretoria de ensino na zona leste e teve até parcelas de uma viagem bancada pelo dono de um dos escritórios suspeitos --em troca, fazia vista grossa para os desvios, suspeita a polícia.
O que chamou inicialmente a atenção da investigação foi a falsificação de guias de pagamentos de encargos de funcionários. Quando os funcionários das creches terceirizadas percebiam, passaram a entrar com ações contra as entidades —a Prefeitura de São Paulo, nesses casos, pode ser responsabilizada judicialmente, uma vez que é solidária na causa.
As entidades gestoras de creche, além de dinheiro, desviavam até comida enviada pela prefeitura para as crianças, segundo a investigação. Após o início das apurações policiais, servidores passaram a receber ameaças --a um deles foi encaminhada até uma coroa de flores, usada geralmente em velórios.
Resposta
A Prefeitura de São Paulo, gestão Bruno Covas (PSDB), afirma em nota ter ampliado o controle interno e a fiscalização às organizações conveniadas que cuidam de creches na capital paulista. Isso resultou no descredenciamento de 131 OSCs "envolvidas em diversas irregularidades" previdenciárias. As entidades eram responsáveis por 353 creches desde 2019.
A Controladoria Geral do Município diz que trabalhos de auditoria, feitos a partir de denúncias recebidas pela Ouvidoria Geral da capital paulista, resultaram em documentos que ajudaram a iniciar a investigação da PF e Receita Federal.
"Os trabalhos de auditoria apuraram irregularidades na prestação de contas e fraudes previdenciárias de Organizações da Sociedade Civil responsáveis pela manutenção de Centros de Educação Infantil na cidade de São Paulo. Tais auditorias fundamentaram a instauração de 24 Processos Administrativos de Responsabilização de Pessoa Jurídica, com base na Lei Anticorrupção, em face de algumas destas entidades", diz trecho de nota.
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