A rua Três Rios, que nem todos os paulistanos conhecem de perto, foi apontada no início do mês pela revista britânica Time Out com uma das 30 mais bacanas de todo o mundo —ocupa o 7º lugar na lista, mais precisamente. Mas quais cores e temperos que deram aos 700 metros encravados no coração do Bom Retiro (região central) um destaque tão grande, entre as milhões de vias existentes no planeta? O cenário multicultural e frenético ao longo do dia é uma boa pista sobre o porquê de ser tão legal.
Para descobrir o que nem todo o mundo vê, a reportagem foi feita em parceria com o fotógrafo que nasceu em um sobrado a 50 metros da Três Rios, há pouco mais de 50 anos.
Da memória de quem conhece bem o chão onde pisa, surgem as lembranças de movimento intenso no horário do almoço ao redor de colégios como o Santa Inês. Também da Casa do Povo, onde há cartazes lembrando que aquela rua é lugar de judeus progressistas.
Na calçada estreita, perfis de todos os lugares do mundo. De ascendência coreana, Mi Kim, 33 anos, trabalha com marketing em e-commerce e aproveitava um intervalo na última terça-feira (22) para fazer compras em uma loja de roupas com estética supermoderna. “Dita tendência de moda diferente, principalmente feminina. A rua tem doceria, restaurantes”, afirmou, esperando que, no futuro, após a pandemia, o lugar ganhe vida noturna tão intensa quanto à luz do dia.
O autônomo Guilherme Cauã Monje, 18, representa o futuro de quem veio no passado. Filho de pai boliviano e mãe brasileira, ele passeava pela rua na última semana com o irmão Davi Kaleb, 11. Na hora do almoço, da calçada, era possível sentir os aromas misturados vindos dos mais diversos restaurantes. “Gostamos muito de comida árabe. A shawarma é boa demais”, disse o mais velho.
Judite Silva, 69, cuida de uma banca de jornais no início da rua e se comove com pessoas que procuram futuro em um lugar melhor para serem felizes, longe das estúpidas agressões da vida ou da falta de oportunidades. “É gostosa essa mistura de povos, né? Amo isso”, diz. “Tem aquela música da propaganda, que eles cantam ‘o meu país é a Terra’. Chega a arrepiar.”
Irmãos assistem à transformação da região vendendo doce familiar
A Doceria Burikita é um patrimônio da rua Três Rios. Não é para menos. São mais de 50 anos vendendo o quitute de massa folhada, com recheio no ponto, que dá nome ao local. Uma tradição iniciada pela matriarca de uma família judaica com raízes na antiga Iugoslávia (hoje, território sérvio).
Enquanto o pai trabalhava com marcenaria, a mãe Matilda fazia as burikitas para os filhos. De tão boas, os amigos insistiram para que a família passasse a vender a iguaria. E assim se deu a mudança de ramo. Hoje, quem toma conta da casa é David Ben Avram, 75 anos, que conta com a ajuda do irmão Miki (apelido de Chaim), 82, que antes trabalhava com fotografia e hoje está aposentado.
Os sabores da casa persistem em meio às alterações pelas quais o bairro e a rua passaram. “Antes, judeus. Hoje, coreanos. Mudou toda a cultura”, afirma David. Uma coisa, porém, segue como sempre. “Todo mundo vive em paz por aqui, principalmente judeus e árabes”, diz o irmão mais novo.
David conta também que a recente divulgação da Três Rios tem trazido um público novo ao lugar, curioso pelo que há na cidade.
Além do atendimento afetuoso e da receptividade típica dos bons comerciantes, chama a atenção o gosto suave dos produtos que fazem sucesso há tanto tempo. “Não é enjoativo. É o típico doce europeu”, diz Miki.
Loja mais antiga mantém tradição síria há quase 100 anos no bairro
São novelos os mais diversos, barbantes multicoloridos, rolos de tecido, clientes fiéis, dois irmãos no comando e uma história que começou com o pai deles, em 1925. A loja Guarani é a mais antiga em atividade na rua Três Rios e conexão direta com o passado.
O cartão da loja, por si só, já é um bom exemplo da mistura local, com o nome “Guarani” ao lado do desenho de um árabe, sobre a descrição que indica “do turquinho”, que foi o apelido do sírio Hacib Camasmie, pai de Roberto e Sergio.
“Não tinha porto para sair da Síria. Tinha que vir pela Turquia”, afirma Roberto, 68 anos, explicando a origem do apelido do seu pai.
Nos anos 1970, a história quase foi interrompida, com o incêndio em uma fábrica de toca-discos que funcionava sobre a loja. “Perdemos 90% do material e fomos para a rua Amazonas, onde ficamos alguns anos.”
Os clientes não abandonam o local. A costureira Jaciara Alves de Santana, 64, mora em Francisco Morato (Grande SP) e é um exemplo. “Tem coisas que só encontro aqui”, afirma.
Boa convivência facilita conversa e tempera as relações pacíficas
A comerciante Jinsook Ahn, 51 anos, chegou há 14 ao Brasil. Metade desse tempo já é dedicado à produção de um pastel no vapor que faz sucesso entre todos os povos, o mandu.
Para ela, a receita da Três Rios sempre foi o respeito mútuo. “Todo mundo é muito inteligente e sabe conviver”, afirma Jinsook.
Filho dela, Seung Min Han, 23, diz que, culturalmente, coreanos são vistos como mais fechados do que outros povos, embora não sejam exatamente assim. “No começo, podem parecer frios, mas se conhecem você é outra história.”
Há três anos no Brasil, o sírio Salam Shammas, 30, vende comida árabe ao lado da família coreana. “Vou trazer toda a minha família da Síria para cá”, diz.
“Morei no bairro por 21 anos e me mudei para a zona norte. Quem nasce aqui sabe o que é o Bom Retiro. Muita diversidade”, diz a estagiária Nahima Farid Sabssoul, 23, que conversava com o amigo durante o almoço na quinta (25).
Vizinhança é prato cheio na culinária
O que faz aumentar o charme da rua Três Rios e foi muito bem observado pela revista britânica é também o entorno, com opções gastronômicas e culturais.
Seguindo em frente, na rua da Graça, o restaurante Acropolis é ponto obrigatório para quem pretende conhecer muito da culinária grega. Já na rua Silva Pinto há a Casa Búlgara, com suas burekas (tipo de rosquinha de massa folhada). Ao lado, há o restaurante vietnamita Pho.366, com sua tradicional sopa. Andando um pouco mais, a Pinacoteca, vizinha da estação da Luz. A Casa do Povo também está na região e foi citada pela revista britânica.
Mas os problemas sociais persistem. A cracolândia, por exemplo, fica a 1 km. “Já foi bem melhor. Chegava aqui de madrugada e os bares estavam abertos. Podia deitar e rolar e ninguém falava nada”, diz o técnico de manutenção José Arnaldo Raí Silva, 65 anos.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.