Rubem Fonseca lidava como ninguém com secreções, excreções e desatinos. Era a condição humana na forma mais bruta a matéria-prima para sua literatura de altíssimo nível.
Em um de seus contos, “Copromancia”, um sujeito se especializa em ler o futuro nas fezes. Em outro, “Viagem de Núpcias”, são elas que fazem os recém-casados se reconhecerem como bichos, o que salva sua antes fria relação.
Não surpreende, portanto, que a potência da seleção brasileira tricampeã do mundo tenha sido representada pelo escritor em um cuspe. Mais especificamente, um cuspe do meio-campista Gérson, prenúncio da conquista no México.
No conto “Abril, no Rio, em 1970”, o jovem Zé dá um jeito de acompanhar um treino do time verde-amarelo, bem pertinho do gramado. E recebe uma aula depois de observar o craque lançar saliva ao chão.
“Viu? Limpo, transparente, cristalino. Sabe o que é isso?”, pergunta Braguinha ao garoto. “Preparo físico, menino, preparo físico, pra cuspir assim o cara tem que estar tinindo. Vamos estraçalhar os gringos.”
Quem viu a Copa de 1970 sabe que foi exatamente isso o que aconteceu. Quem não viu está tendo a oportunidade de ver nesta semana, em reprises do SporTV.
Amanhã, a emissora vai exibir a final contra a Itália. E eu recomendo que você observe bem a atuação de Gérson, dono do meio-campo. As imagens não são em alta definição, mas dá para perceber que os passes do camisa 8, límpidos, assemelham-se ao seu cuspe.
É verdade que o futebol era outro e havia mais espaço para o craque na faixa central do gramado. Ainda assim, não deixa de impressionar a influência que tinha o niteroiense em praticamente todas as jogadas.
José Rubem Fonseca notou isso e se projetou no garoto Zé, aquele de abril, no Rio, em 1970.
O escritor morreu nesta semana, aos 94 anos, deixando uma obra cheia de secreções genais. Se você não leu seus romances, novelas e contos, leia. Se leu, releia. É temporada de ótimas reprises.
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