Dizia Nelson Rodrigues que “a arbitragem normal e honesta confere às partidas um tédio profundo, uma mediocridade irremediável”. Brincava o cronista que “só o juiz gatuno, o juiz larápio, dá ao futebol uma dimensão shakespeariana”.
Morto em 1980, ele não viveu para ver a versão cinematográfica do árbitro corrupto. Em “Boleiros — Era Uma Vez o Futebol” (1998), de Ugo Giorgetti, o papel é maravilhosamente interpretado por Otávio Augusto.
Em um dos ótimos diálogos do filme, o apitador vigarista repreende o bandeirinha honesto pela indicação de um impedimento claro: “Antes de levantar essa m..., olha para mim, p...!”.
“Boleiros” é do século passado, uma época em que se podia gritar gol sem medo de uma anulação tardia. O juiz larápio já existia, claro, mas ao menos tinha a dignidade de cravar a faca no peito do torcedor às claras, sem demora, sem tortura.
Em tempos de VAR, a dinâmica é outra. Se o gatuno tem a intenção de beneficiar um time, é mais fácil fazê-lo sentado na cabine do árbitro de vídeo do que ouvindo xingamentos no gramado. Basta ter o descaro de Virgílio Paiva, o rapace vivido por Otávio Augusto no cinema.
Há diálogos da vida real que rivalizam com os escritos por Giorgetti. E, como a Conmebol tem divulgado as conversas da arbitragem, hoje é possível se divertir com uma espécie de “Boleiros” versão 2.1, com as personagens falando espanhol.
Veja, por exemplo, o papo disponibilizado pela confederação sul-americana da jogada em que o River Plate teria feito 3 a 0 no Palmeiras, na última terça-feira, pela Copa Libertadores.
O juiz de vídeo, investido de uma autoridade superior àquela do árbitro do campo, decide que o gol deve ser anulado por impedimento. O assistente do VAR, porém, observa que o alviverde Luan é o último a atingir a bola, o que pode descaracterizar a irregularidade.
“Hay un toque posterior al del jugador”, diz o auxiliar, antes de ser acuado como o bandeirinha do filme. “Adelante, adelante”, responde, imponente, seu chefe, ordenando a pronta cobrança do tiro livre indireto.
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