Descrição de chapéu Opinião

A bola é um detalhe: Um futebol sem Neco

Pobres que tomaram o futebol há 100 anos não teriam lugar nos elitizados estádios atuais

São Paulo

Criado em 1999 para substituir a Folha da Tarde, o Agora que você tem em mãos —ou na tela do celular— faz parte de uma longa linhagem de jornais do Grupo Folha. Tudo começou com a Folha da Noite, cuja primeira edição acaba de completar um século.

As comemorações desses 100 anos levaram à releitura de exemplares antigos, sempre exercício interessante. Um jornal oferece o retrato de uma época, e rever o que a Folha publicou em suas primeiras páginas é uma viagem ilustrativa.

Em 1921, São Paulo e o Brasil viviam um período de franca transformação da qual não escapou o esporte. Os operários que passaram a ocupar as fábricas no processo de industrialização ganharam também os campos, em um momento no qual o futebol se consolidava como força popular.

Foi uma época decisiva para que o desporto praticado com os pés caísse de vez no gosto dos mais pobres. Superava-se ali a resistência da elite, dona da bola no início do século 20.

O craque Neco (à esq.) e os maloqueiros do Corinthians tiveram papel importante na popularização do futebol, antes um esporte exclusivo dos ricos - Reprodução

Essa transformação teve seu primeiro registro na Folha da Noite logo na segunda edição do periódico. Um texto da edição de 21 de fevereiro descrevia o entusiasmo com que as pessoas foram acompanhar um amistoso entre Corinthians e São Bento, na Ponte Grande, perto de onde hoje fica a Ponte das Bandeiras.

“Nem a canicula implacavel de hontem, nem as eleições federaes demoveram os nossos apaixonados de se transportarem para a Floresta”, observou o jornal, referindo-se ao calor daquele domingo, ao pleito que definiu deputados e senadores da República e à região paulistana onde o Corinthians tinha seu campo.

A equipe preta e branca teve papel fundamental na popularização do futebol. Fundada por trabalhadores humildes e disposta a desafiar as agremiações tradicionais dos ricos, teve sucesso na empreitada.

O craque Neco, protótipo do maloqueiro e sofredor que a Fiel valoriza até hoje, resumia e personificava essa luta. A ponto de ter surrado de cinta um comerciante abastado que chamara a formação alvinegra de “time de carroceiros”.

Há 100 anos, os maloqueiros venceram a batalha e tomaram a bola. Um século depois, Neco não teria dinheiro para frequentar o estádio do Corinthians, cada vez mais branco e mais elitizado, o que infelizmente não é exclusividade do clube nascido no Bom Retiro.

O moderníssimo estádio do Corinthians, com ou sem as limitações impostas atualmente pela pandemia do coronavírus, não tem lugar para gente como Neco - Reprodução/TV Corinthians
Marcos Guedes
Marcos Guedes

33 anos, é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e, como o homenageado deste espaço, Nelson Rodrigues, acha que há muito mais no jogo do que a bola, "um ínfimo, um ridículo detalhe". E-mail: marcos.guedes@grupofolha.com.br

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