Descrição de chapéu Opinião

A bola é um detalhe: Textos sem sabor

Falta na cobertura do Agora sobre a crise do Corinthians o olhar crítico de um velho assinante

São Paulo

Houve um tempo, doce, nem tão distante, em que o ramal do Vencer na redação do Agora era acionado religiosamente ao fim do primeiro tempo dos jogos do Corinthians. O juiz apitava, o telefone tocava, e todos sabiam que era Seu Zé na outra ponta da linha.

“O treinador não vê que está tudo errado?”, resmungava, mesmo que seu time estivesse a caminho de uma vitória tranquila. “O central está perdidinho, meu Deus. Hoje, nós estamos f....”

José Carvalho Junior exercia seu direito inquestionável de reclamar e de ditar o que deveria estar nas páginas do jornal no dia seguinte: “Sou assinante”. E falava com a autoridade de quem tinha vivido de tudo em preto e branco.

"O guardião está doido para entregar hoje", alertava Seu Zé, recusando-se a adotar modismos passageiros como a palavra "goleiro" - Fabio Braga - 27.ago.10/Folhapress

Em 1944, por exemplo, na chegada do craque Domingos da Guia, lá estava Seu Zé entre os torcedores que foram à estação de trem recebê-lo. Em 1971, viu com os próprios olhos o inesquecível triunfo por 4 a 3 sobre o Palmeiras no Morumbi.

Naquele 25 de abril, o Corinthians precisou de oito minutos para levar dois gols de César Maluco. Só a soberba alviverde impediu a construção de uma goleada ainda na etapa inicial.

No intervalo, o técnico Francisco Sarno corrigiu erros da escalação e acionou o jovem Adãozinho. A equipe alvinegra cresceu, buscou o empate, viu-se atrás no placar de novo, reagiu outra vez e, aos 43 minutos, chegou a uma virada improvável.

Luís Carlos fez o possível para frear Ademir da Guia, e o Corinthians buscou no finalzinho, há 50 anos, uma virada inesquecível sobre o arquirrival Palmeiras - Acervo - 25.abr.71/Folhapress

Na volta ao bairro do Belém, Seu Zé dividiu o lotação com um pobre palmeirense. “Nossa, enchi o saco. Falei tanto. Ele dizia: ‘Tenha dó, olha as coisas que o senhor está falando’. Mas tinha que se f...”, ria o corinthiano, recordando a deleitosa jornada que completará meio século neste domingo.

Bem mais afável do que podem sugerir seus palavrões, o desbocado torcedor e leitor se despediu em 2019, aos 92 anos. Deixou saudoso até o aparelho telefônico do Vencer, que se posiciona para receber uma ligação fulminante a cada tropeço de Léo Natel.

Mas o telefone não toca, e os textos sobre a terrível fase corinthiana ficam sem o sabor que teriam com dicas do velho assinante.

Marcos Guedes
Marcos Guedes

33 anos, é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e, como o homenageado deste espaço, Nelson Rodrigues, acha que há muito mais no jogo do que a bola, "um ínfimo, um ridículo detalhe". E-mail: marcos.guedes@grupofolha.com.br

Assuntos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.