Irmão ganha coração novo e gêmeo ainda continua na fila

Crianças de dois anos sofrem do mesmo problema cardíaco

Vinte e três dias após a cirurgia no coração, o pequeno Enzo, 2 anos, assiste desenhos pela tela do celular da mãe, deitado em um dos leitos da enfermaria do quinto andar do Incor (Instituto do Coração) de São Paulo (região central). Enquanto o irmão gêmeo Benjamin, de quem não desgruda por um só segundo, sente sua falta e o espera na agora casa alugada na capital paulista.

A história dos gêmeos univitelinos de Imperatriz, cidade no interior maranhense, que nasceram com a mesma doença cardíaca, desenvolveram sintomas simultâneos e foram inscritos na fila de transplantes com apenas nove meses, se tornou caso inédito no hospital público universitário de alta complexidade. E, até o momento, sem registro no Brasil.

Enzo e Benjamin foram diagnosticados aos oito meses de idade com cardiomiopatia dilatada, doença do músculo do coração que perde a função de ejetar o sangue. Com a gravidade do caso, os irmãos foram se tratar em São Paulo. Chegaram em dezembro de 2017 e, de cara, os médicos avaliaram a necessidade da realização de dois transplantes.

 

E um deles já ocorreu com sucesso, no dia 8 de março, quando Enzo ganhou um novo coração de bebê de um ano e sete meses, vítima de acidente de trânsito em capital de outro estado. Os pais da criança, que não tiveram a identidade informada, optaram pela doação.

Mas Benjamin continua na fila de espera. “É nossa expectativa fazer o outro transplante, o quanto antes”, diz a cardiopediatra e responsável pela área clínica do Programa de Transplante Infantil do Incor, Estela Azeka, 56 anos.

Embora Benjamin tenha sido inscrito na fila antes de Enzo, os médicos consideraram fatores clínicos e riscos cirúrgicos daquele momento para escolha de quem receberia o órgão. “Não é só a questão do peso. Benjamin apresentava uma infecção, o que já seria fator impeditivo”, afirma a médica, ao apontar que 30% dos pacientes dessa doença podem ter histórico familiar.

Hoje Benjamin é um dos 32 pacientes do Programa de Transplante Infantil do Incor que aguardam na fila. Desse total, entre três e quatro crianças têm menos de dois anos de idade.

Segundo o cirurgião cardiovascular de Cardiopatias Congênitas do Incor (Instituto do Coração), Luiz Fernando Caneo, responsável pela delicada tarefa de transplantar o coração no peito do menino Enzo, o caso é raro. “Era um caso especial, com uma responsabilidade dupla, inclusive. Nada poderia dar errado”.

De acordo com o médico, a cirurgia do transplante de Enzo durou aproximadamente sete horas. “Sem dúvida, que a equipe toda sentiu pela singularidade do caso. A energia foi muito grande”, diz Caneo, também pai de dois filhos.

Gravidez por ‘milagre’

A professora formada em letras Mila Miranda Costa, 35 anos, mãe coruja dos gêmeos Enzo e Benjamin, diz que “a fé sempre a norteou a família”.
De família religiosa católica, Mila acredita que sua vida é regada por milagres. A começar pelo fato de ter engravidado sem qualquer tipo de tratamento, após sérios problemas de endometriose (distúrbio em que o tecido que reveste o útero cresce em outras regiões do corpo).

Para piorar, o marido, o técnico elétrico David Allan Costa da Silva, 35 anos, também descobrira ter varicocele (dilatação das veias que drenam o sangue dos testículos), principal causa de infertilidade nos homens.

“Quando o exame deu positivo para gravidez, fui levada por uma emoção sem igual. Era humanamente impossível”, relembra Mila.

E o casal seria novamente surpreendido com a notícia da chegada de gêmeos, após o ultrassom. “Aí, era misto de tremedeira com alegria”, conta. Benjamin veio primeiro, seguido de Enzo.

Descobriu a doença dos gêmeos quando Benjamin apresentou os sintomas, aos oito meses. Mas foi Enzo o primeiro transplantado, não por escolha de Mila. “É inconcebível para uma mãe escolher por um filho.”

Recuperação

Estela Azeka, também professora em cardiologia na FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), diz que, agora, após o transplante de Enzo, começa nova fase de cuidados clínicos.

“Clinicamente, o Enzo está bem e faz os exames de rotina. É uma fase em que a criança diminui sua imunidade”, explica Estela.

O menino deverá permanecer internado no Incor, pelo menos, até o fim de maio. “A rejeição pelo órgão costuma ser mais frequente nos primeiros três meses”, diz a cardiopediatra.

Levantamento feito no Incor aponta que, entre crianças com menos de 20 quilos, a possibilidade de se conseguir um coração é apenas de 40%. “Tem pacientes na fila de espera de três a quatro anos”, diz Estela.

Por isso, que a profissional ressalta a importância da doação de órgãos, independentemente da idade. “Do outro lado, aquele que perde uma vida é um momento muito difícil. Mas o gesto nobre pode salvar tantas outras”, diz Estela.
 

Assuntos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.