Descrição de chapéu Zona Sul

Ônibus da madrugada na capital paulista roda cheio durante quarentena

Linha noturna com mais passageiros leva trabalhador com janela fechada e sem higiene necessária

São Paulo

A linha noturna com maior número de passageiros da capital faz parte do dia a dia de cozinheiros, ajudantes gerais, porteiros e seguranças, que se espremem ombro a ombro em seus ônibus. Sem a higienização a cada viagem e com janelas seladas por causa do ar condicionado, os coletivos da N635-11 (Terminal Grajaú-Jardim Gaivotas) se tornam também incubadoras do novo coronavírus no extremo sul de São Paulo.

Por dia, são cerca de 250 passageiros, em média. Pouco, comparado aos mil transportados antes da pandemia. O problema é que os ônibus foram reduzidos pela metade e o volume de pessoas é concentrado logo depois da meia-noite, em direção ao Jardim Gaivotas, e pouco antes das 4h, rumo ao Terminal Grajaú. Justamente a volta e a ida para o serviço de gente que está ameaçada pelo desemprego, sem a opção de ficar em casa.

O ar carregado e a respiração pesada de quem acabou de acordar fizeram as janelas do ônibus “transpirarem” por volta das 3h da quinta-feira (4). “Está tudo fechado, não tem circulação nenhuma. O medo do vírus existe e é grande”, diz o porteiro Agostinho Santana Ferreira, 59 anos, que entra às 6h na Luz (centro). “Meus filhos aconselham a sair do serviço para ficar em casa, mas as contas não deixam.”

No início da madrugada, a preocupação é de quem volta do trabalho. Grande parte, gente que passa o dia trancada na cozinha, preparando os pedidos de quem usa aplicativo para matar a fome. “Tenho menino para alimentar, aluguel para pagar. Camarada vai fazer o quê? É entregar para Deus”, conta o cozinheiro Guiomar Salvino da Silva, 42. Ele assumiu o posto de um colega afastado por suspeita de Covid-19, num restaurante em Pinheiros (zona oeste).

José Domingos da Silva, 40, faz manutenção na construção civil. Não tem home office. “A coisa certa é não sair. Mas sou registrado. Se parar, é capaz de ficar sem emprego. A gente tem aquele medo.”

Chefe de cozinha teme por familiares

A chefe de cozinha Brenda Bittencourt, 23 anos, já teve quatro colegas de trabalho contaminados pelo coronavírus e pega a linha N635-11 todas as madrugadas, no trecho derradeiro de uma viagem de três horas entre a avenida Brigadeiro Faria Lima (zona oeste) e o ponto final do ônibus, no Jardim Gaivotas (zona sul). Ela costuma ser a última passageira e, após desembarcar, desaparece na escuridão de uma rua mal iluminada à beira da represa.

“Não sei o que é quarentena. Fiquei em casa só quatro dias, mas outro chefe pegou Covid-19 e tive que voltar ao trabalho no lugar dele”, diz Brenda. Um dos contaminados pegava ônibus diariamente com ela.

Todo esse sacrifício é para manter de pé o sonho de seguir em São Paulo. A chefe chegou de Caravelas (BA) há oito meses e, depois de muitas provas e testes, conseguiu o emprego. “É um momento muito difícil. Às vezes penso ‘será que volto ou não’. A minha mãe pediu para eu voltar para a Bahia, mas não foi fácil conseguir a vaga”, afirma.

No trabalho, ela passa por protocolos de segurança que incluem banho e medição de temperatura antes de iniciar as atividades. A preocupação está na volta para casa, onde mora com avó, tia, prima e três crianças. “Tenho medo de transmitir a doença”, diz.

Passageiros auxiliam o setor da saúde

A linha do trabalhador também transporta pessoas que dão apoio direto aos profissionais de saúde que estão no combate ao coronavírus. É o caso da ajudante de cozinha Deusinete Alves, 42 anos, que sai de casa todos os dias por volta das 3h para estar às 6h no Morumbi (zona oeste).

Deusinete trabalha em escola preparada para receber filhos de profissionais do Hospital Albert Einstein. “Ficamos com os filhos deles, que não puderam parar de trabalhar. As crianças não teriam com quem ficar”, afirma.

A atendente Elizabete da Silva, 38, pegava a N635-11 antes da pandemia. A Covid-19 fez com que passasse a entrar 40 minutos mais cedo no Hospital São Luiz, no Morumbi. Por isso, toma a “linha gêmea”, que faz o mesmo trajeto até antes da meia-noite. O coronavírus também afetou seu dia a dia. “Vejo o pessoal saindo da UTI com o semblante triste, cansado. Dizem que estão perdendo vidas.”

‘É lugar insalubre’, diz infectologista

O infectologista Renato Grinbaum afirma que a aglomeração torna o ônibus um local extremamente perigoso para os passageiros. “O risco é de pegar Covid-19. É um lugar insalubre”, diz.

Segundo o especialista, o uso de máscaras é importante dentro do coletivo é importante, mas não traz a garantia de que a pessoa não será contaminada pelo coronavírus em um ambiente superlotado. “Máscara é complemento, não a base da proteção. O importante é que as pessoas não estejam aglomeradas”, explica.

Grinbaum ressalta que é preciso garantir as condições adequadas no transporte. “A gente fala em abertura, que é algo que deve ser discutido, mas a gente tem que pensar em dar condições para que essas pessoas possam ir ao trabalho.”

Em um ônibus superlotado, o passageiro está entregue à própria sorte, segundo o infectologista. “O indivíduo não tem o que fazer. As condições devem ser oferecidas pelas autoridades”, afirma.

SPTrans diz que fará ajustes

A SPTrans, sob a gestão Bruno Covas (PSDB), afirma que monitora a linha N635-11 e que fará os ajustes para adequar a frota à demanda. Quanto à higienização, a empresa responsável pela linha foi acionada, segundo a prefeitura. A SPTrans diz que todos os coletivos novos são equipados com ar-condicionado e seguem as normas brasileiras.

“O sistema conta com dupla filtragem do ar e assegura, a cada três minutos, a troca constante do ar que circula no veículo conforme previsto em norma”, diz. Também afirma que o ar condicionado passa por higienização periódica e inspeção diária.

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