Diante da possível volta às aulas presenciais em outubro, tanto na rede municipal quanto estadual de ensino em São Paulo, o ensino a distância tem sido um desafio durante a quarentena, principalmente na periferia. As dificuldades vão desde a falta de equipamentos para estudar em casa em regiões mais pobres, até a falta de grana mesmo para os materiais básicos.
As escolas estaduais passaram a utilizar o aplicativo Centro de Mídias SP para as aulas online e, segundo a Secretaria da Educação do Estado, a conexão é feita por meio de um pacote de dados patrocinado e, portanto, gratuito —tanto para professores quanto para alunos. Mas há quem sequer saiba que a possibilidade existe.
“Nunca ouvi falar disso [pacote gratuito]”, afirma a vendedora Rita de Cássia Faria, 35 anos, que mora no Grajaú (zona sul) e tem três filhos matriculados na rede estadual. “Um tem que esperar o outro terminar a lição para começar a fazer, porque as séries são diferentes. E não tenho condições de ter uma boa internet”, diz ela, que, desempregada desde 2017, se vira como pode para cuidar dos quatro filhos —um deles com necessidades especiais— com apenas um celular, que é o único dispositivo que eles têm para os estudos.
A realidade de Rita é semelhante à de Daniele Alves Leite, 35, que também está desempregada e mora no extremo sul da cidade, na Vila Gilda. “No meu bairro, que é bem afastado, beira de represa, tem dia que a gente passa o dia todo sem internet. Esse Brasil que eles mostram nas [entrevistas] coletivas, com muita conectividade, não existe.”
Mãe de uma criança e um adolescente que são alunos da rede municipal, ela também não tem computador em casa e acompanha as tarefas em dois celulares. Além da conexão, a queixa é de que as instituições não fornecem materiais básicos. “Tive que comprar folha sulfite, lápis de cor, farinha de trigo pra fazer massinha de modelar.”
Por falar em material, a monitora de transporte escolar Renata Silva Delgado, 37, afirma que o livro didático de um dos filhos só chegou em julho e, ainda assim, graças ao trabalho da associação de moradores da qual ela faz parte, na Brasilândia (zona norte), que se encarregou de buscar e distribuir as apostilas, já que, segundo ela, os entregadores dos Correios “não entram em todas as vielas do bairro.”
Há defasagem mesmo para quem tem suporte
O ensino de escolas públicas a distância não tem sido desafiador só por questões de estrutura. Quem tem um notebook, celular e um bom pacote de internet esbarra em outros problemas, caso da cabeleireira Maíra Curvinel, 33, que tem uma filha matriculada na 6ª série de uma escola municipal do Jardim Tremembé, na zona norte.
“Mandam um monte de tarefa meio sem lógica, nada a ver com o ano em que ela está. Outro dia, a lição era um texto enorme com a instrução, apenas, de ‘copiar no caderno’.”
Ela afirma que, para que a pré-adolescente não ficasse prejudicada com os estudos na quarentena, contratou uma professora particular, três vezes por semana.
“No começo [da pandemia] não teve nenhuma orientação. O que a escola fez foi mandar livros para casa para que fizéssemos sozinhos com as crianças”, relata a professora de inglês particular Juliana de Souza Foresti, 36, que também tem um bom suporte na parte técnica do ensino a distância, mas só sentiu que as coisas melhoraram na aprendizagem do filho (do 1º ano do ensino fundamental da rede estadual) mais recentemente, depois que a própria docente responsável pela turma dele teve a iniciativa de dar aulas online e ao vivo para as crianças. “No começo da pandemia, ele mal reconhecia as letras do alfabeto.”
Professores relatam falta de equipamento e trabalho ininterrupto
Na outra ponta desse cenário, a reportagem também conversou com professores de escolas públicas —que tiveram suas identidades preservadas. Todos os docentes ouvidos relataram uma dificuldade comum: ter de trabalhar praticamente sem pausa.
“Eu trabalho 24 horas, porque cumpro horário na escola, mas fico disponível o tempo todo, e ainda sem um equipamento que me dê a segurança de dar uma aula com qualidade”, conta L.P, que leciona em uma escola do Jardim Brasil, na zona norte.
Na mesma região da cidade, a professora G.R. opina que “o saldo permanece de muitas desigualdades”. “Da minha experiência numa escola da periferia, lá apenas 50% dos estudantes têm acesso ao ensino remoto.”
Mesmo em bairro de classe média, as entraves não são tão diferentes. A evasão, por exemplo, fica escancarada ainda que à distância e o aplicativo de mensagens de C.P., que trabalha em uma escola estadual da Vila Mariana (zona sul), vira um meio de desabafo.
“Outro dia uma mãe me chamou no Whatsapp às onze e meia da noite, querendo saber se o filho estava acompanhando as aulas online. Isso foi no fechamento do segundo bimestre. Ela desabafou, disse que trabalhava o dia todo e não tinha a impressão de que ele estava estudando. Eu deixei para responder no dia seguinte, porque tinha uma notícia triste para dar a ela: ele nunca tinha visto uma aula minha.”
F. leciona na rede estadual em São Mateus, na zona leste, e também vivencia a falta de percepção do horário de trabalho. “Tem aluno que manda mensagem às onze da noite querendo saber se o e-mail que ele mandou com a atividade chegou”, afirma o professor. “Outro dia eu estava dando uma aula pelo Google Meet (aplicativo de reuniões online), só dois alunos apareceram, de uma turma de quarenta e poucos, e o moleque saiu correndo, no meio da aula, pra pegar pipa.”
Atividade remota amplia fragilidades do sistema, dizem especialistas
Para a psicopedagoga e professora-doutora da faculdade de educação da PUC-SP, Neide de Aquino Noffs, o sistema público não estava preparado para esse modelo de ensino, e o que foi colocado em prática durante a pandemia “apenas amplia as desigualdades que já existiam” no ensino público. Há ainda outro ponto quando se pensa nos alunos em situação extrema vulnerabilidade: eles estão convivendo mais de perto, em quarentena, com o contexto social em que vivem. “Quando as aulas voltarem a ser presenciais, o professor vai ter que lidar com questões emocionais desses alunos, que vão eclodir.”
Na visão de Sandro Caldeira, professor de cursos preparatórios e especialista de neurociência na educação, os docentes precisam ter uma orientação pedagógica mais voltada para as metodologias da aprendizagem online e não basta achar que todos os envolvidos no processo conseguiriam acompanhar as aulas a distância só porque já usavam internet.
“É bem diferente de você mexer em redes sociais, por exemplo. Talvez o aplicativo de educação não seja tão intuitivo.” Com relação à retomada das atividades, a coordenadora de projetos da ONG Todos Pela Educação, Thaiane Pereira —para a qual as “fragilidades dos sistemas de ensino” ficaram claras na pandemia— sugere que se faça uma avaliação de como foi o período a distância, “com programas de reforço e recuperação que comecem com uma prova diagnóstica”.
Entidades defendem seus planos de ensino
A coordenadora do Centro de Mídias SP, Bruna Waitman, afirma que as aulas da rede estadual também podem ser acessadas pelas redes sociais (Facebook e YouTube) e diz que, no caso da própria plataforma que ela coordena, os professores tiveram mais de 200 horas de formação. Falando em nome da Secretaria Estadual, ela garante que há suporte disponível para os pais sobre as atividades, que o pacote de dados é fornecido gratuitamente e que os materiais também podem ser baixados e depois acessados off-line.
Ainda segundo Waitman, a pasta tem feito, diariamente, reuniões com grupos focais para ter feedbacks sobre como melhorar os aplicativos e há a determinação por parte da Secretaria para jornada de trabalho dos docentes seja respeitada.
Já a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Educação afirma que está realizando a entrega de 465 mil exemplares do Volume II do material “Trilhas de Aprendizagem” e que seu conteúdo integra a estratégia de atendimento da pasta, “com atividades para resolução em casa e que não exigem uso de conexão com a internet”.
A administração municipal cita uma pesquisa que verificou que 60% dos alunos têm acesso regular à rede de computadores e de forma complementar. “Foram criados 1 milhão de contas digitais para os estudantes da rede municipal, e mais de 80 mil contas para os docentes. O acesso a essas contas ultrapassa os 100% entre os professores, que já postaram mais de 150 mil atividades na plataforma”, diz a Secretaria, em nota.
Sobre a falta de entrega na Brasilândia, como mencionou a reportagem, os Correios dizem que “o centro de distribuição no bairro ficou fechado temporariamente, do final de maio até o dia 22 de junho, por força de medidas judiciais impetradas por sindicatos”.
Antes do fechamento, segundo a estatal, 29 mil kits de material didático foram entregues a alunos da região e outros 5 mil foram redirecionados às Diretorias Regionais de Educação de Freguesia/Brasilândia e Pirituba/Jaraguá, para serem retirados pelos pais ou responsáveis.
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