Sem shows, os circos baixam a lona e lutam pela sobrevivência

Proprietários e artistas saem às ruas, mesmo correndo risco, e até pedem ajuda à população

São Paulo

Fechados desde março por causa da pandemia, os circos, gigantescos ou minúsculos, tentam se reinventar ou apenas resistir durante os meses mais difíceis de suas longas trajetórias. Em meio à tormenta provocada pelo coronavírus, parte das lonas já foi baixada e mesmo quem mantém a esperança de botar novamente o sorriso no rosto das famílias sabe que a realidade a ser enfrentada daqui para frente é duríssima.

A empresária Marlene Querubim fundou o Circo Spacial ainda nos anos 80 e, pela primeira vez em 35 anos, se vê obrigada a baixar a lona sem perspectiva de retorno. Com espetáculo inovador, de inspiração futurista, o Spacial terá que se reinventar para sair do zero e decolar com seus mais de 70 funcionários. “O circo é um ato de resistência, mas jamais imaginamos que pediríamos cestas básicas para o nosso público”, diz. A sorte é que as pessoas, de fato, doaram mantimentos em quantidade suficiente para serem repassados a outras famílias circenses.

Segundo Marlene, são mais de 600 circos espalhados pelo país, com cerca de 30 mil pessoas dependendo diretamente dos espetáculos. “É uma economia muito forte nas artes populares”, afirma.
Economia forte que exige investimentos para se manter de pé. O aluguel de um terreno na capital paulista, por exemplo, custa R$ 25 mil mensais, em média, podendo chegar a até R$ 100 mil. Fora isso, há inúmeras taxas, alvarás, contas de água e luz, além dos salários dos artistas e funcionários.

A fundadora do Spacial diz que tem lutado por verbas para a retomada e diz que não perde a esperança. “A arte vai salvar as pessoas após a pandemia. Acredito na terapia do riso e o circo tem essa missão.”

Periferia

É nas periferias que a missão de fazer rir encontra seu público mais necessitado e o diretor e produtor Wellington Antoni Stringhi, do pequeno Circo Joia, sabe bem disso. “Ninguém sai daqui do Grajaú [zona sul] para pagar R$ 70 em uma peça de teatro na região central. O circo é a única opção para essas pessoas”, conta.

Pois desde março as quatro famílias que compõem o Joia têm sobrevivido de doações, em um terreno emprestado onde a lona está desmontada. “Sofremos um nocaute”, diz Stringhi.

Palhaço histórico foi mais vítima do novo coronavírus

A pandemia tirou do picadeiro um dos palhaços mais antigos do Brasil, com uma história que se confunde com a própria trajetória do circo no país. Athos Silva Miranda, 77 anos, o Chumbrega, morreu no início do mês em decorrência de complicações provocadas pelo coronavírus.

Filho de Chumbrega, Marlon Antonio Pires Miranda, 33, conta que o pai permaneceu isolado com a família no terreno do Circo Di Napoli, em Campo Limpo Paulista (64 km de SP), por ao menos dois meses. Sem grana, a família teve que se expor ao risco em maio. “Ele não tinha contato com ninguém, mas a gente teve que começar a se virar para se manter. Estou na rua vendendo biscoito de polvilho”, diz Panqueca, que se apresentava com o pai e também se contaminou com o vírus.

O palhaço Chumbrega (à esq.), que morreu no último dia 3, e o filho, Panqueca, que herdou o Circo Di Napoli
O palhaço Chumbrega (à esq.), que morreu no último dia 3, e o filho, Panqueca, que herdou o Circo Di Napoli - Robson Ventura - 2.set.17/Folhapress

​Chumbrega chegou a ficar intubado, mas reagiu e estava internado em um quarto de hospital, quando teve uma infecção, morrendo no último dia 3. “Não era apenas meu pai. Era também o meu companheiro”, conta Panqueca.

A paixão da família pelo circo é centenária e atravessou o oceano. Os avós de Chumbrega eram ciganos fugidos da Áustria ainda na Primeira Guerra Mundial. Trouxeram consigo um urso que causava espanto pelas fazendas do interior do Brasil, onde se apresentavam. “Mas era como um cachorro para eles”, conta Panqueca.

O gosto pelo riso está no sangue desses artistas e deve sobreviver ao coronavírus. O filho de Panqueca tem sete anos, já deu início à carreira como palhaço e tem um apelido que é uma homenagem singela ao avô. Quando ganha o nariz vermelho e o rosto pintado para espalhar alegria, Gustavo vira o Chumbreguinha.

Empresário cobra auxílio do governo

Se o momento atual está longe de ser feliz, a preocupação com o futuro também atormenta quem vive do circo no Brasil. Já endividados e sem renda, empresários do ramo afirmam que não tem grana nem mesmo para retomar as atividades, quando a situação voltar ao normal.

“Já fizemos três empréstimos e não temos como recomeçar sem dinheiro. Se a gente conseguisse uma linha de crédito do governo já ajudaria bastante”, afirma Humberto Paulino Pinheiro, 37 anos, que administra o Circo Di Napoli, com 58 funcionários. “Sem R$ 50 mil, eu nem consigo sair do lugar”, conta.
Em meio à crise, o Di Napoli ainda tem a sorte de ter um terreno próprio em Campo Limpo Paulista (64 km de SP). Mesmo assim, Pinheiro tem se virado com outras atividades para conseguir algum recurso.

Na última quinta-feira (13), por exemplo, estava no Ceagesp, na capital paulista, comprando mantimentos para serem vendidos em um hortifruti montado às pressas. “O único lado positivo disso é que agora sei que sou capaz de fazer outras coisas também.”

Segundo o representante do Di Napoli, a situação financeira do público também preocupa quem vive do circo. “Você sente que o povo já está ficando sem dinheiro. Os ingressos custavam R$ 30, R$ 50, e agora você terá que cobrar menos. Como vai sustentar o espetáculo com bilhete por R$ 10?”, questiona Pinheiro.

Grandes companhias também sofrem

Não são apenas os circos tradicionais que foram afetados pela crise provocada pela Covid-19. Até mesmo a empresa que licencia a milionária marca Patati Patatá, que tinha quatro lonas gigantescas circulando pelo Brasil, se viu obrigada a demitir funcionários.

Até a empresa que licencia a marca Patati Patatá teve de fechar unidades e demitir funcionários, por causa da crise
Até a empresa que licencia a marca Patati Patatá teve de fechar unidades e demitir funcionários, por causa da crise - 21.mai.19/Divulgação

“Fomos forçados a fazer o que grandes empresas de entretenimento mundial fizeram, como a Disney. Conosco não foi diferente”, diz o produtor Rodrigo Molina. “Quando se tem um projeto dessa magnitude, com quatro circos, e se instala uma pandemia, os cortes são inevitáveis”, explica.

Segundo Molina, os últimos espetáculos foram realizados ainda na metade de março. Mesmo assim, ainda se tentou manter as vilas com as carretas que servem de moradia aos artistas por mais tempo. Meses depois, sem condições de sustentar a estrutura, a empresa ofereceu então ajuda para que as pessoas voltassem para o lugar onde residiam antes de se juntar ao circo, segundo Molina.

O produtor afirma que os prejuízos são incalculáveis e que devem aumentar com o passar do tempo, porque a estrutura parada também se deteriora mais rapidamente. Para piorar, não há previsão de retorno, algo que, na prática, vai além de qualquer regulamentação do poder público. “Papai e mamãe têm que se dispor a sair de casa com a sua criança. Por mais que tenha tudo lá [álcool em gel, capacidade reduzida] , eles precisam se sentir seguros para voltar a frequentar o circo.”

Nem mesmo drive-in atrai a população

Até drive-in tem sido uma tentativa de circos tradicionais conseguirem renda em meio à crise provocada por cinco meses de interrupção das atividades.

Desde a semana passada, por exemplo, o tradicional Circo Stankowich passou a se apresentar para o público dentro dos carros. No sábado retrasado (8), porém, das 33 vagas, apenas 4 foram ocupadas. “Começamos a fazer drive-in, um espetáculo adaptado. Mas, mesmo assim, as pessoas ainda estão bem receosas. Era a nossa esperança. É frustrante. A gente pagou para trabalhar”, diz Kamila Stankowich, administradora e também mágica.

Kamila diz que o circo conta com cerca de 100 pessoas e que ninguém foi cortado. A administradora faz questão de agradecer a população de Itupeva (72 km de SP), onde o circo está parado. “O pessoal daqui é abençoado, porque está cuidando da gente”, diz, sobre as doações de alimentos recebidas nos últimos meses.

Circo faz live para arrecadar alimentos

O Circo Portugal também tenta encontrar saídas e já fez duas lives para arrecadar alimento e dinheiro para as 120 pessoas que fazem parte de sua trupe. “Até para o próprio artista é algo completamente diferente. O circo vazio é estranho. Eles estão sempre acostumados com o público, com o sorriso da criança. Trabalhar para a câmera é diferente”, diz Michael Anderson Portugal, um dos representantes da família.

Neste fim de semana, o espetáculo sob a lona seria retomado em Sumaré (103 km de SP), mas com apenas 40% da capacidade. “Estamos apreensivos para saber qual será a reação do público, se o pessoal terá interesse de ir ao circo”, fala Portugal.

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