O dia começa cedo na Paróquia de São Miguel Arcanjo, no Belém (zona leste), porque há muito a ser feito. Na primeira missa da manhã, às 7h, padre Júlio Lancellotti clama pela proteção divina contra todas as potestades do mal e se prepara para mais uma batalha de uma guerra que já dura mais de três décadas —e que ainda está longe de ser vencida. Com um carrinho de supermercado nas mãos e cercado por gente do povo, caminha por cinco minutos os 400 metros que separam igreja e Núcleo de Convivência São Martinho Lima, onde dezenas de pessoas em situação de rua esperam pelo seu conforto e pão.
A pandemia não afastou esse senhor de 72 anos do meio de sua gente, o povo da rua. Máscara reforçada, exames mensais para detectar uma possível contaminação pelo coronavírus e todos os cuidados que exige de si mesmo e dos outros. E, claro, muita disposição para estar onde poucos se dispõem a ir. ”A gente não pode, simplesmente, largar de mão para ver o que vai acontecer", diz.
Na fila do pão e do café da manhã, o padre se destaca e é procurado para mediar conflitos entre os próprios desalojados e para dar conselhos. Ao colocar alimento nas mãos de quem chega cheio de fome, Lancellotti também recebe agradecimentos. ”O objetivo não é apenas entregar essas coisas, mas conviver, humanizar a vida“, diz.
Sobre a solidariedade da população em geral durante a pandemia, o padre conta que ela foi maior quando tudo estava fechado. ”Diminuiu, porque as pessoas voltaram para as suas vidas normais“, fala.
Também considera as críticas que sempre surgem quando o assunto é buscar na fortuna da própria Igreja Católica o auxílio para quem não tem nada. ”São ideias que existem. A Igreja, em São Paulo, não é mantida de cima para baixo, mas de baixo para cima. Quem mantém é a base“, diz. E revela. ”Todos os padres estão recebendo 40% a menos na côngrua [o salário dos párocos] desde abril. Não está tendo missa, muita coisa, a receita caiu“, diz.
Se recebe reconhecimento, como o Prêmio Dom Paulo Evaristo Arns de direitos humanos, sabe também que atrai muita raiva. ”Dentro e fora da igreja“, diz. E lembra de quando foi chamado de ”cafetão da miséria“ pelo deputado estadual Arthur do Val, o Mamãe Falei, que foi candidato a prefeito da capital paulista. ”Acham que estou ganhando alguma coisa, que tenho vantagem“, diz.
Quem está ao lado do povo conta que sabe qual é a sua sina. ”Luto não para ganhar, mas para ser fiel. Porque vou perder sempre“, diz o padre. ”Só perco, nunca ganho. Sou um fracassado, perdedor“, afirma, sorrindo. ”O que sobra é resistir e lutar. E apanhar para caramba“, completa.
Famílias são acolhidas por ação social
A ajudante de limpeza desempregada Luciana Batista, 40 anos, está vivendo com os dois filhos pequenos, desde o fim de novembro, em um albergue na capital paulista. Sem trabalho, ela se viu também sem ter como pagar o aluguel de R$ 300 pela casa onde morava em Itaquera.
Com Rebeca Vitória, 5 anos, e Gregory Henry, 5 meses, Luciana tomou café da manhã na semana passada sob os cuidados do padre Júlio Lancellotti no Núcleo de Convivência São Martinho Lima, onde a refeição é bem servida. “Ele é um pai para nós. A gente não tem um lugar fixo para ficar comendo e aqui a gente vem e sempre tem de tudo. Café, roupa”, afirma. “Sem a ajuda do padre, eu teria que ficar andando por aí, batendo na porta das casas para conseguir um pão, um leite para as crianças.”
A história da ajudante de limpeza é comum a tantos brasileiros afetados pela pandemia. “Estava há cinco anos e oito meses em uma firma. Por causa desse coronavírus, fui mandada embora. Guardei um dinheiro no banco, estava pagando o aluguel com esse dinheiro. Como acabou, fiquei em situação de rua”, conta.
A ambulante Sandra da Silva, 43 anos, também está com os filhos na rua, mas já faz dois anos. Não tinha mais onde colocar a barraquinha sob a qual cortava e vendia abacaxi e melancia. Vive agora de doações, vende panos de prato e balas nos semáfaros, mas depende muito do trabalho social de Lancellotti, ao lado de Davi, 6, Nicolas,11. “Se não fosse por ele... A mão de Deus colocou o padre no nosso caminho. A gente respeita e tem muita gratidão por ele. Não tem nem palavra, meu”, afirma.
Obra social aproxima quem quer doar o que pode
Não é só quem precisa de ajuda que procura o padre Júlio Lancellotti. O exemplo no trabalho com a população de rua também atrai quem quer doar um pouco do que tem. Foi o caso das amigas Sara Abdala, 68 anos, e Marina Barbedo, 67.
A dona de casa Sara, moradora do Paraíso (zona sul), foi até o Belém (zona leste) por vontade de ajudar. “Queria muito conhecer o padre Júlio. Tenho uma admiração enorme. Acompanho, sigo no Instagram, rezo com ele. Gostaria de poder fazer muita coisa”, diz. “É um exemplo de humanidade para todo mundo, pelo momento que estamos passando”, afirma.
Para a psicóloga Marina, o trabalho desenvolvido pelo padre inspira quem deseja transformar a sociedade. “A ação dele não é de moda, de pandemia. É a ação de uma vida. Quando ninguém fazia nada por crianças portadoras de HIV, ele foi o primeiro a acolher, e o preço que pagou por isso não foi baixo. Ele é um lembrete vivo de que os anos passaram, ele envelheceu, como todos, mas a fé dele rejuvenesceu. É uma referência para todos que têm algum compromisso com a vida”, diz.
Trabalho é conviver em comunidade
Ana Maria da Silva Alexandre trabalha há duas décadas com o padre Júlio Lancellotti e conhece muito a trajetória dele. Hoje, ela atua na coordenação da Casa de Oração do Povo da Rua, na Luz (região central), um dos lugares também frequentados pelo pároco. “Ele não faz assistencialismo. Não é só entregar uma marmita, um copo de chocolate, um pão, mas conviver, criar uma comunidade”, diz.
Durante a pandemia, Ana Maria se emocionou muito em uma abordagem. “Foi o dia em que abraçou um morador na rua e disse ‘eu encontrei Jesus’. Concordo com ele. Quando você consegue encontrar Jesus no olhar do irmão da rua você está fazendo o trabalho certo. Apesar de conhecê-lo, de vê-lo fazendo isso o tempo todo, aquele dia foi especia”, conta.
O trabalho dessas pessoas é encontrar ternura onde nem sempre há. Na pandemia, menos ainda. “Você nunca sabe o que vai acontecer. A rua é uma caixinha de surpresas e, no momento, há muita violência. A sociedade está muito violenta, então quer ver morador de rua na calçada, porque acha que está enfeiando. Falta solidariedade.”
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