Voltaire de Souza: A velhicese vinga

Voltaire de Souza

Frio. Vento. Garoa.
O inverno se aproxima da cidade. As paulistanas já sabem. Tempo de enfiar o cano da calça na botinha.
Dona Augusta dava um sorriso triste.
—Aqui é meia de lã dentro do chinelo.
A família se preocupava.
—Ela anda muito deprimida.
Dona Augusta descia a escada.
—Quem é que deixou a janela aberta?
O neto se chamava Raul.
—Pode deixar que eu fecho, vó.
—Olha a minha tosse.
De fato. Parecia rasgar-se a garganta da anciã. Raul se levantou da poltrona.
—Vou comprar um teste para a senhora.
Dona Augusta suspirou.
—Tanto faz. Vou morrer mesmo.
Na hora do jantar, abriu-se a discussão.
—Ela não pode continuar assim.
—Só fica dentro de casa.
—Mas se já tomou uma dose…
—É o que ela diz. Ninguém sabe.
Raul se encarregou de nova iniciativa.
—Vó. Vou te levar no posto. Segunda dose.
Mais de uma centena de idosos no local.
—Cadê a enfermeira?
Não era posto. Era um bingo clandestino.
Dona Augusta se divertiu.
—Ganhei 200 contos.
O teste de Covid deu positivo.
—Haha, devo ter contaminado uns 30.
O vírus está no ar.
Mas, por vezes, a podridão se esconde na alma.

Frio. Vento. Garoa.
Frio. Vento. Garoa. - Pexels
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