Descrição de chapéu Coronavírus

'Vi centenas de pais enterrando os filhos, o que não é normal', diz sepultador

Profissionais que atuam em cemitérios relatam o drama das famílias dizimadas pela pandemia

São Paulo

O Brasil chega aos 500 mil mortos pelo coronavírus com um trauma provocado pela inversão daquilo que, normalmente, é visto como a ordem natural da vida. Hoje são pais enterrando filhos em frequência vista somente durante as guerras, quando a população jovem lançada ao campo de batalha é dizimada por armas de fogo.

Sepultadores enxergam isso de perto todos os dias e, mesmo com a dura rotina da profissão, não conseguem se acostumar.

"Vi centenas de pais enterrando os próprios filhos, o que não é normal", conta Adenilson Souza Costa, 48 anos, 26 deles no Cemitério de Vila Formosa (zona leste de SP), onde trabalhou até duas semanas atrás.

Adenilson Souza, 48 anos, que trabalhou no cemitério da Vila Formosa, na zona leste, e há duas semanas está no Cemitério da Consolação, no centro de SP - Ronny Santos/Folhapress

Os números oficiais dão razão à anormalidade notada pelo sepultador. Até 31 de dezembro, 23,1% dos mortos por Covid-19 no estado de São Paulo tinham até 59 anos, segundo a Fundação Seade. Apenas em 2021, até a última sexta-feira (18), essa faixa etária já representava 35,1% dos óbitos, o que mostra a ampliação da letalidade entre os mais jovens nos últimos meses.

A morte dos jovens por Covid-19 é tão marcante que, em alguns casos, o sepultador lembra até das quadras onde ficaram os corpos. "Na 44A, um pai enterrou uma filha de 23 anos, tão nova. Teve também o enterro de uma menina de 16 anos, que os pais trouxeram e foi para a quadra 99", diz. "A gente tenta amenizar a dor com uma boa conversa. Está difícil para todo mundo", afirma Costa.

O coronavírus não poupou a família do próprio sepultador, que perdeu um primo jovem, com 36 anos. "Há um mês e meio. Ele se chamava Thiago, era como irmão e convivia com a gente como jardineiro", diz.

Sepultador por nove anos, James Alan Gomes da Silva, 35 anos, trabalha agora há pouco mais de um mês na agência funerária. Antes disso, participou de muitos enterros no cemitério da Vila Formosa.

"Dos últimos meses para cá, vimos muitos desses casos [pais enterrando os filhos]. No início da pandemia, acontecia mais com os idosos", afirma.

A rotina não muda a percepção do sepultador a respeito de quem se vai e do luto dos familiares que fazem a despedida. "Por mais que a gente lide com essa situação no dia a dia, é sempre espantoso ver isso acontecer. É triste, sempre tudo novo. Não ficamos acostumados, temos sentimentos", diz Silva.

"Já vi pessoas novas, com 28 anos, sendo sepultadas, com os pais tristes", completa.

Mãe perdeu filho enquanto estava intubada no hospital

A pedagoga Mariliz Fagotti Jatobá, 54 anos, não viu o filho partir, mas lida com a tristeza deixada pela ausência dele, três meses após a morte. O médico veterinário e gastrônomo Hemano Luiz Fagotti Jatobá tinha 36 anos e morreu em decorrência do coronavírus enquanto a mãe estava intubada por causa da Covid-19.

"O Hemano não tinha nenhum problema de saúde, se cuidava ao extremo. A gente acabou pegando a Covid-19 juntos, de uma terceira pessoa que frequentava a nossa casa. Na família deles, não aconteceu nada. Na minha família, foi avassaladora", conta Mariliz.

A pedagoga diz que durante a própria intubação teve uma série de alucinações. Posteriormente, passou pela UTI e depois foi para um quarto, sem que contassem sobre a morte do filho. "Quando comecei a recuperar a lucidez, comecei a pescar coisas. Estava desconfiada, mas sem certeza de nada", diz a pedagoga.

Mariliz conta que o filho ficaria com sequelas terríveis, se sobrevivesse. "Não vou falar que estou 100% conformada. A dor, a saudade... Estou até mudando de apartamento, porque a presença dele é muito viva", diz Mariliz.

Uma coisa, entretanto, a tira do sério: o negacionismo de quem recusa vacinas e, sem sensibilidade, diz que o filho dela estaria vivo se tomasse remédios sem comprovação científica contra a Covid-19.

Sepultador filósofo vê mundo diminuir

"Quando sepulta o filho, você enterra suas ilusões. Os projetos que teriam para ele". Quem diz isso é Fininho, apelido do sepultador Osmair Camargo Cândido, 60 anos, que trabalha no cemitério da Penha (zona leste da capital) e é também filósofo formado.

Na quinta-feira (17), Fininho conversou por telefone com a reportagem sobre o fato de tantos pais estarem enterrando seus filhos por causa da pandemia e disse que isso tem acontecido com frequência maior que a normal. "O homem chora a própria solidão. Cada vez que vê o filho ou o amigo morto, o seu mundo diminui", afirma Fininho.

O sepultador filósofo diz que ninguém vai aprender nada com o meio milhão de mortes provocadas pelo coronavírus no país até o momento. "A morte é sempre para o outro. É para o vizinho, para o bêbado, para o noia. Ninguém pensa na própria morte", conta. "A gente está acostumada com a fantasia, que é mais fácil. Pensar, dói. Tem que se despir da vaidade", completa.

Fininho também diz que a morte, de forma geral, é sempre igual. "É um estojo aberto. Cada um coloca o que quiser e não há uma definição", afirma.

O sepultador diz que já enterrou "bacaninha e bandido" e que, para ele, foi a mesma coisa. "Nos dois casos, não ganhei um centavo de caixinha", fala.

Apesar de tudo isso, ele diz que, "claro", reflete sobre tantas mortes durante a pandemia. "Acha que não tinha uma porcentagem que poderia ser evitada? É que na América Latina a vida não vale nada. É arrogância", fala. "Quando não sabe, a gente procura se amparar em alguma coisa, que é a ciência", afirma. O sepultador filósofo também vê "retroação e irracionalidade" na atual tragédia.

Velho ou novo, Fininho conta que existe em todos o peso de não querer morrer. "A gente começa a inventar que ainda é cedo. Que cedo, nada. Ninguém sabe."

"Futuro da família são os jovens", diz psicólogo

Psicólogo e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie em Campinas (93 km de São Paulo), Marcelo Alves dos Santos diz que tanto a morte do idoso quanto a do jovem é dolorosa. Uma das diferenças, entretanto, está na forma como se compreende cada uma.

"O futuro de sua família são os jovens; a história são os idosos. Havia o término da história, mas não o risco de perder o futuro", conta o psicólogo. "O que todo pai faz, além de amar e proteger? Investir no futuro daquela pessoa. Você sonha que ele será um jornalista, um médico. Quando morre, morre o sonho da família. Essa dor é imensurável", explica.

Santos diz que os efeitos da pandemia do novo coronavírus vão perdurar ainda por muito tempo na sociedade e, para superá-los, será necessário apoio de fontes as mais variadas.

"Tanto eu quanto amigos estamos preocupados com o adoecimento mental generalizado", diz o professor. "As pessoas vão precisar de muita ajuda", finaliza.

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