Terreiros mantêm viva tradição de São Cosme e Damião em São Paulo

Santos da Igreja Católica são celebrados também por adeptos das religiões de matriz africana

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São Paulo

A tradição de entrega de doces, balas, pirulitos, pés de moleque, pipoca e outras guloseimas e brinquedos às crianças ainda persiste na cidade de São Paulo.

Sobretudo devido às comemorações a Cosme e Damião, santos lembrados neste domingo (26) pela Igreja Católica, e nesta segunda (27), nas religiões de matrizes afro-brasileiras.

Essas manifestações vêm de famílias devotas ao santo; dos chamados leigos —ligados à Igreja Católica mas que não tem cargos oficiais—; benzedeiras; casas de cultura; centros de capoeira; e, sobretudo, templos de Candomblé e Umbanda.

Cada um estipulou uma data para a entrega dos doces. Alguns fizeram neste final de semana, outros, ainda farão nos próximos dias e alguns reservaram a entrega para a semana do dia 12 de outubro, Dia das Crianças.

Todos os entrevistados pediram para que as datas não fossem divulgadas, de modo a evitar eventuais aglomerações de pessoas.

Pai Otávio (o gerente administrativo Otávio Augusto Gomes da Silva), do Templo de Umbanda Caboclo Ubirajara Peito de Aço Zé Pilintra e João Baiano, em Guarulhos (Grande São Paulo), diz que neste ano serão distribuídas 5.000 sacolinhas com doces às crianças da comunidade São Rafael.

Os itens foram doados pelos chamados filhos de santo, e as pessoas que são atendidas no templo.
Já a benzedeira Maria Eliza de Luca, 64, conhecida como Tia Eliza de Categeró, que faz rezas e bênçãos a quem lhe procura em sua casa, diz que manterá a tradição de distribuir doces e balas neste ano, tal como faz há mais de 40 anos.

Segundo o psicanalista Luis Guilherme Campos Santos, 44, o pai Luís do terreiro de umbanda Tenda de Umbanda Cansuá de Preto - Manoel do Congo, localizada na Vila Prudente (zona leste), além da distribuição às crianças, muitas pessoas em situação de rua também acabam recebendo as guloseimas.

Apesar da liberação para celebrações religiosas, a pandemia do novo coronavírus restringiu a festa em alguns locais, tal como no terreiro de Candonblé Raizes de Aruanda, em Guarulhos, que terá entrada limitada de pessoas, segundo pai Jefferson (Jefferson de Campos Soares de Oliveira).

Em outros locais, como o centro de tradições baianas e capoeira Mestre Ananias, na Bela Vista, ela não será feita. O espaço realizou durante 12 anos grandes festas de São Cosme e Damião. “Quem sabe em 2022 possamos fechar a rua de novo”, diz administrador de empresas Rodrigo Bruno Lima, 43, o Rodrigo Minhoca.

Influência

Até os anos 1980, as festas de São Cosme e Damião na periferia de São Paulo eram muito mais populares do que são atualmente.

A expansão evangélica protagonizada pelos neopentecostais sobretudo nas periferias sufocou as tradições de Cosme e Damião e fez com que essas manifestações que têm forte ligação com a matriz africana se escasseassem como manifestação popular, ficando restrita aos terreiros.

Essa é a análise do sociológico Rafael Rodrigues da Costa, mestre em sociologia da religião pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e pesquisador visitante da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

“Havia uma capilaridade muito maior historicamente, porém, observamos uma grande mudança a partir dos anos 1980, com a ascensão das igrejas evangélicas, com uma nova visão de mundo”, afirma.

Segundo Costa, diferentemente do sincretismo religioso nas religiões afro, evangélicos praticam uma espécie de “sincretismo às avessas”. Nesse contexto, cria-se uma espécie de polo negativo onde as entidades são associadas ao diabo.

“Isso afeta esse tipo [Cosme e Damião] de festa, fazendo com que fique restrita aos terreiros”, explica.
Um dos efeitos práticos disso é a recusa de alimentos tais como os doces de Cosme e Damião.

“Já teve casos de entregar doces à criança e a mãe devolver e falar que é coisa do diabo”, diz Pai Otávio, do Templo de Umbanda Caboclo Ubirajara Peito de Aço Zé Pilintra e João Baiano.

40 anos

Maria Eliza de Luca, 64, há mais de 40 anos cultiva a tradição de distribuir doces e balas para as crianças no dia 27 de setembro.

Devota de Santo Antonio de Categeró, é mais conhecida por Tia Eliza de Categeró, uma benzedeira que adotou esse sobrenome devido à devoção por Santo Antonio de Categeró.

Ela mantém uma capela em um dos pavimentos da casa onde mora, na Bela Vista, região central de São Paulo. Alem da estátua em tamanho natural do santo de devoção, de 1,80 metro de altura, também reúne uma série de outras estátuas. Ao lado de sua cama estão as imagens de Cosme e Damião.

“Eu fui criada desde criança vendo as festas de Cosme e Damião”, afirma.

Apesar de ter em sua casa imagens de santos cultuados pelos católicos, ela se diz ecumênica e usa até um chocalho indígena para benzer. “Sou católica mas não sou idiota. Eu abraço todas as religiões”, diz.

Antes da pandemia do novo coronavírus, ela afirmou que distribuía cerca de 300 saquinhos com doces para as crianças. Ela lamenta não ter feito o mesmo em 2020. “Eu saía benzendo pela rua, as crianças faziam fila”, afirma.

São Cosme e Damião | Entenda

Quem foram?
Dois irmãos (há dúvidas se gêmeos) nascidos na Arábia no século 4 e que foram estudar medicina na Síria

O que fizeram?
Segundo a fé cristã, eles aliavam o conhecimento da medicina à fé, e, com isso, muitos que estavam severamente doentes e prestes a morrer foram salvos, o que era visto como milagre para alguns. E não cobravam nada para atender os doentes, sobretudo crianças

O que aconteceu?
O imperador Diocleciano, que perseguia o povo cristão, não gostou nada da ideia e mandou prendê-los, torturá-los e decapitá-los acusando-os de feitiçaria, por volta do ano 300 depois de Cristo. Seus corpos foram colocados em uma igreja destinada a eles

Por que ocorre a festa?
A data de 26 de setembro instituída pelo catolicismo se dá pelo fato de nessa data, no século VI (entre 526 e 530, não se sabe ao certo o ano), ter sido aberta a basílica dedicada a eles em Roma. A festa e a distribuição de doces seria uma forma de pagar promessas a esses santos

Fonte: Vaticano, UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e Arquidiocese de São Paulo

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