Vestir a pele de um super-herói com o maior rigor possível, usando os acessórios típicos, é o que alguns voluntários da cidade de São Paulo têm feito em ações para ajudar crianças, sobretudo aquelas que estão internadas devido a alguma doença grave.
E, para isso, eles não medem esforços, e chegam a gastar, do próprio bolso, até R$ 20 mil em uma única vestimenta para poder se parecer o mais fiel possível com o personagem.
É o caso do corretor de imóveis Rogério Ferroni, 45 anos, que importou o traje do Capitão América, além de acessórios, que totalizam um investimento de cerca de R$ 20 mil. Além disso, vendeu um carro para comprar um triciclo e estilizá-lo. “Eu colecionava umas bicicletas antigas e resolvi vender para ser o melhor Capitão América que conseguisse”, afirmou.
Já a enfermeira Patrícia Leite, 42, encomendou sob medida seu traje de Mulher-Maravilha numa empresa do Canadá que possui a licença de produzir réplicas perfeitas, num investimento de cerca de R$ 9 mil.
Outro que investiu pesado do próprio bolso foi o fotógrafo Samir Varani, 37, que encarna o Deadpool. Alguns, como o corretor de imóveis Marcos Ivan Chiavelli, 57, preferem versões mais clássicas, tal como a que ele faz do Batman dos anos 1960.
Sem desmerecer aqueles que compram as suas roupas em locais mais populares, eles afirmam que capricham por considerar que as crianças notam a diferença.
“Eu poderia ir na ladeira Porto Geral [na região da rua 25 de Março, no centro de São Paulo] e comprar as coisas lá. Respeito muito quem faz isso. Mas não é a minha opção e não é a mesma coisa”, afirma Ferroni, presidente do Instituto Heróis do Bem, uma ONG criada especificamente para realizar visitas a crianças com câncer em hospitais, atividade que voluntários têm feito virtualmente por causa a pandemia.
E o curioso é que nesse contexto sobra espaço também para anti-heróis. Entre os voluntários é possível encontrar pessoas que encarnam vilões, como Darth Vader, Loki e até Thanos. “Isso mostra que todo mundo pode fazer o bem de alguma forma, mesmo sendo um anti-herói”, afirma Varani, na pele de Deadpool, personagem que é tido como um anti-herói.
Devido à pandemia do novo coronavírus, eles não podem visitar as crianças nos hospitais. “Sinto até como se faltasse ar por falta desse trabalho voluntário. E eu sinto muita falta disso”, afirma Chiavelli, o Batman “old school”.
E eles estão fazendo falta, segundo a terapeuta ocupacional Renata Sloboda, que atua no Itaci (Instituto de Tratamento do Câncer Infantil).
“Já tivemos casos em que essas visitas auxiliaram diretamente no tratamento de algumas crianças que estavam com dificuldade de aceitar determinados procedimentos e ao ver seu herói falando que aquilo era importante, observamos que a criança passou a aceitar melhor”, afirmou
Para substituir a presença física, alguns cosplayers voluntários passaram a realizar vídeos ou mesmo enviar materiais de pintura para as crianças com a temática dos super-heróis.
“Os voluntários estão distribuindo materiais impressos, tais como cadernos, gibis e materiais de pintura e desenho, além de programação on-line, que pode ser gravada e enviada às crianças, ou ainda em formato de reunião, para que mais crianças possam participar”, afirma Douglas Boscato, gerente da Fundação Criança-Itaci.
Inspiração
Apesar de não ter sido a justificativa para que todos começassem a usar os trajes, episódios de câncer em família motivaram alguns a realizar as ações.
É o caso de Patrícia (Mulher-Maravilha), que tem uma filha que luta contra o câncer desde o nascimento, e Varani (Deadpool), que teve um irmão que superou a doença.
E também o do instrutor de treinamento Rodrigo Nobre Schimidt, 36, que perdeu uma irmã de 13 anos vítima de câncer no cérebro. Segundo disse, o episódio o deixou muito abalado e ele decidiu ajudar na causa do câncer infantil.
“Falar em público para mim é normal. Porém, nunca usei fantasias. Mas decidi ir de qualquer jeito”, afirmou.
O de “qualquer jeito” que ele se refere não é a falta de cuidado com as fantasias. É pelo fato de ter 1,99 de altura e não encontrar trajes que cubram suas longas pernas. “Fica até engrado e virou um diferencial”, afirmou.
A morte de sua sobrinha aos nove anos também levou o professor da rede pública de ensino aposentado, Silvado Gil da Silva, 55, a fazer ações na pele de Batman. Além das visitas, ele criou um projeto para levar os alunos do ensino médio até os hospitais, de modo que eles conhecessem a realidade das crianças.
Mestrando em psicologia no Núcleo de Estudos Junguianos da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), onde desenvolve uma pesquisa sobre influência trazida pela figura do herói, o psicólogo Jordan Vieira, 31, diz que o fascínio pelos heróis se explica pela simbologia que eles carregam.
“São características para enfrentar desafios e dificuldades. No que diz respeito às crianças, o fascínio acontece devido à fantasia, dialogando com a suspensão da realidade", afirma.
“É como Jung [Carl Jung, fundador da psicologia analítica] disse: ‘do mesmo modo que aquele que fere ao outro fere a si próprio, aquele que cura, cura a si mesmo’. Minimamente, as pessoas se organizam e podem vir a dar um novo significado para dor que viveram", afirma.
Nem sempre a luta contra a doença motiva a vontade de ajudar. O que levou a médica veterinária Rosamaria Cardone, 40, a também encarnar a Mulher-Maravilha, foi a situação social das crianças.
“A gente tem tudo na vida, e essas crianças passam fome e frio, morando em barracas ou calçadas. E isso [doações] me faz muito bem. É uma sensação indescritível e eles se sentem bem também”, afirma.
Conheça abaixo um pouco mais sobre a história dos super-heróis suja lutam para gerar sorrisos nas crianças mais necessitadas.
Drama
Em 2015 o corretor de imóveis Rogério Ferroni enfrentou um drama familiar que mudou a sua vida. A mulher, grávida, perdeu o bebê. Ao descer as escadas do hospital onde foi visitar a esposa, ele avistou uma criança em uma cadeira de rodas, tomando soro.
“Na hora associei aquela imagem ao Capitão América, que ganhou os seus poderes após tomar um soro. Eu colecionava umas bicicletas antigas e resolvi vender para ser o melhor Capitão América que conseguisse”, afirma.
Ferroni conta que decidiu vender um carro para comprar uma triciclo e adaptá-lo para usar nas doações que fazia para crianças próximo à Radial Leste.
“Costumo falar que você pode pegar um problema na sua vida e transformar em algo bom para o próximo. Eu poderia estar lamentando até hoje, mas decidi transformar de algo bom para o próximo. A gente recebe mais do que doa às vezes. Não só de uma criança, mas da família. E tirar um sorriso dessa família, dessas crianças, é algo muito bom”, diz.
Um dos divulgadores do trabalho de Ferroni foi o jornalista Ricardo Boechat, morto em 2019, à época em que era âncora da BandNews FM. Em um dos programas, ao ver a imagem do personagem nas redes sociais, o jornalista o parabenizava. A partir daí, se deram várias entrevistas até ele ser chamado de “Capitão América brasileiro”.
“A partir daí se tornou conhecido e recebi vários convites para visitar crianças até de fora de São Paulo”, afirmou.
O poder do exemplo
A decisão da enfermeira Patrícia Leite de usar os trajes da Mulher-Maravilha veio ao acompanhar de perto a saga da filha, nascida em 2009, já com câncer nos rins e que, após outros episódios de câncer e transplantes, ainda luta para estabilizar sua saúde.
“Eu interrompi minha atuação na área de enfermagem, deixei de cuidar de pessoas desconhecidas e passei a ser enfermeira da minha filha”, afirmou.
Certo dia, Bibi disse à mãe que gostaria de receber a visita dos super-heróis onde estava internada. Foi então que Patrícia entrou em contato com Rogério Ferroni, o Capitão América, via redes sociais.
“Eu expliquei toda a situação da Bibi e perguntei quanto ele cobrava pela visita. Foi aí que ele respondeu que, na verdade, não tinha valor e que o pagamento era um beijinho dela. Quando ele chegou, os olhinhos ela brilhava e abriu um sorriso de orelha a orelha”, disse.
Segundo Patrícia, a filha já demonstrava sinais de cansaço de toda luta que enfrentava. “Ela estava muito triste, cansada, introspectiva, depressiva e já recusando alguns procedimentos. Após essa visita que o capitão América fez, eu notei uma melhora significativa”, afirmou.
Foi neste momento que Patrícia decidiu dedicar parte do seu tempo ao voluntariado. “E assim nasceu meu personagem. Acredito que todo ser humano deve despertar para fazer o bem, seja levando um abraço ou um sorriso ou apenas apertando a mão, olhando nos olhos dizendo, você não está sozinho”, afirma.
Hoje ela atua como vice-presidente da ONG Heróis do Bem, presidida por Ferroni.
Gentileza gera gentileza
Após a morte da irmã de 13 anos vítima de um câncer no cérebro, o instrutor de treinamento Rodrigo Nobre Schimidt ter ficado muito abalado e decidido a ajudar na causa do câncer infantil.
Ele diz não ter um único personagem. Mas vários, de Batman, passando por Thor até Chapolim, e, para isso, conta com a ajuda de uma loja que lhe empresta os trajes. “Eu sempre alugava e até as atendentes achavam estranho achando que eu ia muito a festas. A partir do dia que eu contei a história de que era para ajudar na luta contra o câncer infantil, disseram que eu nunca mais pagaria pelas fantasias”, afirma.
Batman old school
“Patch Adms – O Amor é Contagioso” é um filme lançado há 23 anos (1998) que retrata a história verídica do médico norte-americano Hunter Doherty Adams, considerado o pioneiro em levar palhaços até hospitais para divertir clientes, nos anos 1970.
Foi ao assistir esse filme no ano de 2004 que o corretor de imóveis Marcos Ivan Chiavelli decidiu ingressar na atividade, inicialmente como o doutor Caramelo, o seu clown. Depois de atuar durante nove anos em um hospital de Mauá (Grande São Paulo), e fundar uma trupe, a Total Clown, decidiu também começar a atuar como super-herói e fundou o grupo Total Heroes.
No caso, ele encarna o Batman. Mas não é qualquer Batman. É um “old school”, dos anos 1960, quando o personagem usava macacão cinza e botas altas. “Eu tenho 57 anos de idade e então eu uso essa referência”, afirma.
“Sinto até como se faltasse ar, por falta desse trabalho voluntário. E eu sinto muita falta disso”, afirma.
Anti-herói do bem
Apesar de sempre ter sido adepto da cultura geek, o fotógrafo Samir Varani nunca pensou em se vestir para encarnar um personagem. Inicialmente ele cobria os eventos de uma ONG que doava cabelos feitos de lãs para meninas em tratamento contra o câncer, e tocas de super-heróis para os meninos.
Até que um convite feito por Rogério Ferroni, que encarna o Capitão América, mudou tudo. “Um dia ele [Ferroni] me ligou dizendo que precisava de um Homem-Aranha e eu aceitei. Disse para mim mesmo, tá aí uma oportunidade. Foi uma experiência fantástica”, diz.
Varani afirma que aceitou o trabalho ao se lembrar da experiência do irmão caçula, que, em 1999, foi diagnosticado com câncer, já curado.
Depois do Homem-Aranha, ele também encarnou o Lanterna Verde antes de se optar, em 2019, por Deadpool, personagem que geralmente atua como um anti-herói.
“Isso mostra que todo mundo pode fazer o bem de alguma forma, mesmo sendo um anti-herói”, afirma.
A respeito dos custos, ele relativiza usando como exemplo o custo de um calçado caro. “Eu imagino um tênis caro numa vitrine e comparo com o preço do traje. O trajeto é para levar o encantamento para criança. Aí sim eu acho vantajoso”, afirma.
Recentemente ele gravou um vídeo para uma criança internada no A.C.Camargo, desejando feliz aniversário. “Eu aprendo muito com elas [crianças]. Eu saio de lá muito mais ajudado do que ajudei”, diz.
Mulher-Maravilha jipeira
Nos quadrinhos, a Mulher-Maravilha usa um jato invisível, bem diferente de uma picape que roda pelas ruas do Belenzinho, bairro da zona leste de São Paulo, pilotada por Rosamaria Cardone, médica veterinária que há oito anos encarna a personagem para entregar donativos a crianças em situação de rua ou vivendo em pequenas comunidades.
“A gente tem tudo na vida, e essas crianças passam fome e frio, morando em barracas ou calçadas. E isso me faz muito bem. É uma sensação indescritível e eles se sentem bem também”, afirma.
A escolha pela picape e por adesivá-la totalmente tem uma justificativa. Jipeira (praticante de turismo off-road, feito em trilhas com carros 4x4), ela precisa proteger o veículo para evitar danos. “Uso o carro no meu dia a dia, e também par essa ação social”, diz.
Apesar de manter um perfil em suas redes sociais onde pede doações, ela diz que na maior parte das vezes, tira do próprio bolso para poder fazer as doações.
“Todo mês reservo uma parte do meu salário. A cada 15 dias vou para uma comunidade e, a cada semana, ao menos uma criança vivendo em situação de rua é atendida. Muitos que me conhecem me ajudam, além dos amigos também”, diz.
Nos trajes e acessórios ela já gastou, do próprio bolso, ao menos R$ 10 mil. Se for colocar na conta a gasolina para ir até os locais de doação e o envelopamento da picape, o valor mais do que dobra.
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