Em meio a toda a afetação inerente a eventos de literatura, houve na última Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, um momento encharcado de simplicidade. Sem a presunção vista em vários dos debates oficiais do evento, um homem de 86 anos cantava um velho samba de enredo.
Meia dúzia de pessoas parou para prestigiar Edeor de Paula, que soltava sua voz frágil em uma das ruas de pedra do centro histórico da cidade. Com um microfone ligado a uma pequena caixa de som, sem acompanhamento de instrumentos, ele apresentava sua grande criação.
Era “Os Sertões”, canção da Em Cima da Hora para o Carnaval de 1976. Naquele ano, a pequena escola de Cavalcanti, na zona norte do Rio de Janeiro, decidiu contar a história do livro de Euclides da Cunha, um clássico de mais de 600 páginas da literatura brasileira.
Edeor, um mecânico que não tinha lido a caudalosa obra, usou o resumo produzido pelo carnavalesco e resolveu se arriscar. Em 24 versos curtos e 540 caracteres, acabou produzindo um dos melhores sambas de enredo de todos os tempos.
Em 2019, a Flip homenageava Euclides. Por isso, o compositor achou justo ir a Paraty e apresentar sua versão de “Os Sertões”, descrevendo o cenário da Guerra de Canudos com trechos que parecem retratar o Brasil de 2020: “Morrem as plantas, e foge o ar”.
A simplicidade fez sublime a música de Edeor, e o resultado foi tão bom que ele foi questionado se alguém mais letrado o teria auxiliado na criação. Na resposta, listou todos os envolvidos no processo: “Meu pai maior, meu irmão maior, minha amiga maior e eu”.
Ele se referia a Deus, Jesus e Nossa Senhora, com os quais foi se encontrar nesta semana. Deixou uma lição de humildade, mostrando que o talento não precisa ser acompanhado da afetação e que o simples pode ser bem melhor do que o complicado.
Às vezes, é verdade, o complicado parece ser a única saída. Não é simples, por exemplo, homenagear Edeor no caderno de esportes.
Lembrar que ele era “de Paula”, como o ótimo palmeirense Patrick, seria forçar a barra. Uma alternativa, também pouco frutífera, seria cobrar do presunçoso e ineficiente São Paulo a simplicidade eficiente do mecânico.
O texto poderia ainda citar o primeiro verso de “Os Sertões” e apontar que o inofensivo Corinthians parece “marcado pela própria natureza”. Afinal, na gozação da pelada, há sempre aquela troça com o adversário menos habilidoso: “Não precisa marcar; esse aí a natureza marca.”
São tentativas ruins. Perdão. Sem a inspiração de Edeor, fica difícil.
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