Serviço de escrever carta ainda resiste com avanço da tecnologia

Pessoas procuram o Poupatempo de SP para mandar seus recados, mas ajuda em currículo predomina

São Paulo

Inspirado no filme "Central do Brasil", que traz Fernanda Montenegro na pele da inesquecível professora Dora, surgia em 2001 o serviço gratuito Escreve Cartas em alguns postos do Poupatempo de São Paulo. Pessoas simples e analfabetas, em sua maioria, ditavam ali seus desejos e esperanças para chegarem aos familiares e amigos distantes.

Dezoito anos depois, a tecnologia avançou. Chegaram os smartphones e as mensagens instantâneas de áudios, além das redes sociais. As correspondências por carta perderam espaço. A maior procura nos postos hoje é para ajudar a preencher formulários e, principalmente, na elaboração de currículos. O Brasil possui 12,6 milhões de desempregados, de acordo com o balanço de agosto do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

"Por causa do celular, caiu muito a demanda pelas cartas. Hoje, o principal trabalho aqui é currículo. Em média, de 30 a 40 pessoas por dia", afirma Martha Maria Bueno Siqueira, coordenadora do programa Escreve Cartas no Poupatempo de Santo Amaro (zona sul).

Entre janeiro e setembro, foram 5.995 currículos feitos no posto de Santo Amaro, para 215 cartas. Em 2016, ao longo dos 12 meses, foram 25.867 correspondências escritas e enviadas, número recorde na história do serviço estadual --hoje sob a gestão João Doria (PSDB).

Ao lado do Poupatempo de Itaquera (zona leste), o posto de Santo Amaro foi escolhido para iniciar o Escreve Cartas em 2001. As duas unidades são as que mais concentram no entorno pessoas de baixa renda.

Em 2008, o mesmo serviço o começou a funcionar em São Bernardo do Campo (ABC), onde permanece.
Apesar da mudança de perfil, a professora de português e inglês aposentada Elizete Carolina Greco Manchini Lopes, 65 anos, voluntária em Itaquera há 10 anos, diz que sempre aparece alguém com uma história especial para ser transcrita no papel.

O número de pessoas que não sabem ler e escrever no Brasil ainda é alto: 11,3 milhões, segundo o IBGE. "Nosso trabalho faz a diferença na vida deles. E para nós, gratificante", afirma.

Ajudante de cozinha pede auxílio para ter um carrinho de café

"Eu quero montar um pequeno negócio: um carrinho de café. Por isso preciso de tudo: garrafas térmicas, copos, chá, café, açúcar, adoçante. Não consigo emprego por conta da idade", diz trecho da carta da ajudante de cozinha Rita Maria de Souza, 62 anos, endereçada a Geraldo Luís, apresentador do "Domingo Show", da Rede Record.

A voluntária Leila Ariza Orrico escreve carta a pedido de Rita Maria, no Poupatempo de Itaquera (zona leste); ajudante de cozinha pede para o apresentador Geraldo Luís ajudá-la a ter um carrinho de café - Ronny Santos/Folhapress

Rita Maria saiu de casa na tarde de quinta-feira (10). No caminho, "algo mais forte", a levou ao setor do Escreve Cartas, do Poupatempo de Itaquera. Sentada à frente da voluntária Leila Ariza Orrico, 64 anos, a avó de dois netos pequenos mostrou seu desespero. Fielmente reproduzido na carta pelas mãos da professora aposentada.
 

Rita Maria pede para escrever na carta que sua "maior preocupação é perder o apartamento da CDHU". E se atrapalha no raciocínio. "Eu adoro ele. Não perco um programa aos domingos. Agora, o Geraldo Luís também está no Balanço Geral à tarde."
 

E depois, volta ao problema ao relatar que são 11 prestações em atraso, fora o condomínio e contas de água e luz. "O piso é de cimento ainda", diz.
 

Rita Maria afirma que sabe ler e escrever, mas não o suficiente para montar uma carta. "Eu sempre trabalhei", afirma, com lágrimas nos olhos, mas confiante. "Se a carta chegar no Geraldo, eu sei que ele vai me ajudar." 

Programa oferece leitura para cegos

Toda quinta-feira pela manhã, Petrúcio Ramos da Silva, 74 anos, nascido em Garanhuns (PE), vai ao Poupatempo de Itaquera. Ali, o cego participa do Voz Amiga, um braço do programa Escreve Cartas.

Segundo Zulene Chagas Rodrigues Aguirre, uma das coordenadoras da unidade de Itaquera, Silva sugeriu que fosse criado um serviço especial de leitura para cegos. E foi assim que surgiu o Voz Amiga. "Eu trago livros, recortes de jornais e até extratos de bancos para leitura", conta o metalúrgico aposentado, que, assim como outros cegos, tem uma sala reservada.

A voluntária Silvia Helena Guimarães Basler lê um livro para Petrúcio Ramos, no programa Voz Amiga, no Poupatempo de Itaquera (zona leste) - Ronny Santos/Folhapress

Atualmente, as voluntárias fazem a leitura para Petrúcio de O Livro dos Espíritos, um dos temas que mais aprecia. Às vezes, a mulher Arlete Silva, também cega, o acompanha.

Antes, Petrúcio escrevia suas cartas em braille, mas ditava para as voluntárias depois. "Eu me correspondia com minha irmã na Bahia, com um médica amiga no Recife e amigos em Portugal", relembra. 

Poupatempo conta com 169 voluntários

Há um exército de 169 voluntários nas três unidades do Poupatempo que oferecem o serviço Escreve Cartas. Não recebem nada nas três horas dispensadas uma vez na semana. As mulheres são maioria, principalmente na terceira idade.
 

Para a professora de ciências aposentada Leila Ariza Orrico, a satisfação de poder ajudar o próximo é maior do que qualquer valor financeiro. "Muitos chegam chorando aqui e saem agradecendo", diz a voluntária, há seis anos em Itaquera.
 

Coordenadora do Escreve Cartas de Santo Amaro, Martha Maria Bueno Siqueira elege a carta inesquecível que ajudou a escrever. "Um rapaz novo, que virou morador de rua por causa das drogas, queria escrever para Deus. No fim, a carta virou com um pedido de perdão ao irmão. Todo mundo se emocionou", conta.
 

Para ser voluntário é necessário boa caligrafia, paciência, saber guardar sigilo e manter uma postura neutra durante a redação da carta. Quem estiver interessado pode procurar um dos três postos do Poupatempo.

Saiba mais

Alguns dos serviços oferecidos

  • Redação e leitura de cartas, elaboração de currículos e preenchimento de formulários

Postos

Capital

  • Santo Amaro: Rua Amador Bueno, 229, 2º andar (dentro do Shopping Mais)
  • Itaquera: Avenida do Contorno, 60 (estação do metrô Corinthians-Itaquera)

ABC

  • São Bernardo: Rua Nicolau Felizola, 100 - Centro 

Horários

  • Segunda a sexta-feira, das 7h às 19h
  • Sábado, das 7h às 13h

Fonte: Poupatempo

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