Se há uma história linda em meio a esta pandemia é a que está sendo escrita pela equipe de cuidados paliativos do Hospital do Servidor Público Estadual, na Vila Mariana, zona sul de São Paulo. Lá, os pacientes com Covid-19 que vão para a UTI não são identificados apenas com nome, idade e doenças preexistentes. Eles ganham uma biografia.
Ao longo da internação, uma equipe formada por médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais vai descobrindo detalhes da vida do paciente e o que eles faziam antes de chegar ao hospital. A história vai para o prontuário e é lida por todos que cuidam do seu tratamento. O resultado é uma linda relação de amor e acolhimento entre médicos, pacientes e seus familiares.
Tudo registrado em biografias. Segundo a diretora-técnica do serviço de cuidados paliativos, Maria Goretti Maciel, a ideia de criar uma equipe que fizesse a comunicação entre o hospital e parentes dos pacientes internados surgiu da necessidade de auxiliar os médicos da UTI, que estavam sobrecarregados com o aumento repentino da demanda, e de fazer com que os familiares não saíssem de casa para buscar informações.
“Nossa proposta foi a de ouvir a família, permitir que ela esclarecesse as dúvidas e ouvir suas demandas. Ou seja, ir além do boletim médico. Ao longo deste caminho foram surgindo as histórias”, afirma. Goretti diz que a equipe na UTI começou a ler as histórias e interagir com os pacientes com mais intimidade. Até apelidos foram adotados.
“Um dos pacientes era chamado pela mulher de Lindo. Quando a equipe leu isso, passou a chamá-lo de Lindo também", conta ela. As histórias descritas no prontuário passaram a ganhar atenção dos médicos da equipe de cuidados paliativos e foram transformadas, de fato, em biografias após a saída deles da UTI —a ideia é no futuro publicá-las em um livro.
A médica Raissa Robles é uma das que ligam todos os dias para os familiares. Ela faz da escrita uma forma de expor seus sentimentos de alegria e dor em meio à pandemia. “Amo de todo o coração essas ligações. Tem horas que dói e a gente vive aquela dor junto com a família como se fosse a nossa. Aí o cuidado [médico] é feito com olhar diferente. Parece que vai dar vida para o paciente.”
Familiares destacam o apoio da equipe para suportar a distância
Familiares de pacientes que ficaram internados na UTI do Hospital do Servidor Público Estadual são unânimes em afirmar o quanto o atendimento feito pela equipe ajudou a suportar a angústia de um tratamento que não permite que eles estejam por perto.
O gerente administrativo Jonathas de Almeida Oliveira, 37 anos, internou a mãe, a auxiliar de enfermagem Maria Cristina de Almeida Oliveira, dias antes de ela completar 59 anos. E logo depois vieram os contatos telefônicos diários. Se de um lado da linha ouvia atentamente o boletim médico, do outro ele enviava áudios e vídeos para que fossem repassados à mãe.
“Quando recebemos as ligações [do hospital] percebemos que somos acolhidos pela equipe. Mas observo que os médicos também são acolhidos nesta comunicação. Quando se conhece o paciente e sua história o olhar é outro. Eles sabem que a minha mãe é a Cristina, uma mulher maravilhosa, mãe de três filhos e avó de cinco netos”, afirmou.
A pedagoga Valéria de Oliveira, 34 anos, também ressalta a forma com que a equipe recebeu sua madrasta e seu pai, que ficaram internados ao mesmo tempo. “O atendimento me acolheu também, porque eu fiquei no meio dos dois [pai e madrasta] internados. E os médicos se preocupavam comigo e perguntavam sempre se eu precisava de alguma coisa”, disse. (RS)
Comunicação é ferramenta no tratamento
Médicos não têm dúvidas de que a comunicação entre equipe de cuidados paliativos e familiares humanizou o atendimento na UTI, um dos ambientes mais tensos de um hospital. O intensivista Caio Vinícius Gouveia Jaoude, coordenador das UTIs Covid-19 do Servidor Público Estadual, disse que as experiências que têm presenciado são um “prato cheio” para futuros estudos sobre como esse contato ajudou na evolução clínica dos pacientes.
Segundo ele, o caso mais surpreendente é de uma paciente que acordou da sedação e teve melhora em todos parâmetros após ouvir um áudio do filho cantando uma música. “A paciente estava sedada, em processo de retirada da entubação, mas ainda não estava acordada. Quando ela ouviu o áudio do filho, ela apertou minha mão, esboçou um sorriso e caiu uma lágrima. Para gente, foi muito emocionante. Todo mundo que estava no plantão parou e foi até o quarto para ver o que estava acontecendo”, afirmou.
Trechos das biografias - pela médica Raissa Robles
"O Covid chegou devastando tudo. Primeiro sua força física, depois sua consciência, depois seu coração, seu pulmão, seu rim, sua pele. Mas nunca sua força e sua vontade de viver! José Feliciano lutava bravamente pela sua vida e surpreendia a todos! Não era hora de partir."
"Devido à dificuldades financeiras, resolveu tentar a vida em São Paulo no ano de 1978. Foi lavrador, pedreiro, cobrador, ajudante geral, dentre muitas outras atividades. Osvaldo adorava cantar música sertaneja raiz. Muito comunicativo, conhecia muita gente. Era um ‘sarrista’, sempre fazendo graça com todos! Suas maiores ‘vítimas’ eram sua esposa, filhos, netos, genros e nora. Era muito amado por todos."
"[Dona Ana] Gostava de estar sempre com os cabelos bem arrumados e as unhas bem feitas. Ficava na varanda da sua casa conversando com as vizinhas e vendo o movimento da rua, era conhecida de todos do bairro. Aos sábados ia à missa com suas amigas da igreja. Muito independente, adorava passear e viajar. Gostava muito de ir à praia e, quando entrava na água do mar, dizia que não via graça de ficar no raso!"
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