Heróis no combate à Covid ainda esperam dizer Feliz Ano Novo

Profissionais de saúde da linha de frente contra a doença não sabem de onde tiram forças

São Paulo

O que aconteceu em 2020 para sempre vai ser lembrado. É assim que o médico intensivista Caio Jaoude, 34 anos, resume o sentimento de profissionais da saúde durante o último ano. Entre desafios, aprendizados e superações, cansaço, medo e algumas alegrias descrevem a rotina dessa categoria, que, durante a maior crise sanitária do século, reafirmou sua importância para a população.

O Agora mostra histórias que cinco profissionais da linha de frente de combate à pandemia da Covid-19 em São Paulo viveram no ano de 2020 como uma homenagem à categoria. Ter tanto protagonismo devido a uma situação de emergência não era uma meta de nenhum deles. Mas foi uma tarefa tomada com garra.

A força de cada um desses profissionais vem de onde mal sabem que ela ainda existe, diz a enfermeira Sandra Fernandes Barbosa, 50. "Todo dia cada um de nós sai de casa para dar o seu melhor sem saber o que nos espera. É altruísmo misturado com consciência social e dedicação."

E depois de tantos dias, o ano parece que ainda não acabou, afirma a pediatra Elisabeth Rebouças, 54. Isso porque o vírus que já matou mais de 190 mil pessoas no país continua a avançar. "Na minha cabeça, só quando tudo isso se resolver, a pandemia acabar, será a zero hora do dia primeiro de janeiro de 2021." Mas ele há de acabar, ela afirma. "Vai passar e a gente vai poder se abraçar."

Onze meses e uma só dedicação

A data é precisa na memória: desde o dia 29 de janeiro de 2020, a médica Beatriz Perondi, coordenadora do Comitê de Crise do HCFMUSP (Hospital das Clínicas), não vive outra rotina que não seja relacionada à Covid-19. Ainda nem havia casos da doença oficialmente registrados no país, mas já era necessário preparar o hospital para recebê-los quando fosse a hora.

O HC viveu uma operação de guerra. Os pacientes no Instituto Central foram realocados, deixando o prédio dedicado somente àqueles com o novo coronavírus, a equipe teve que ser reforçada e novos processos e rotinas foram criados. Em abril, eram 60 doentes graves chegando à unidade diariamente.

"O principal desafio foi trabalhar utilizando a técnica que aprendi sem misturar com a parte emocional, vendo os colegas ficando doentes e com medo de também ser infectada." Trabalhando dia e noite na tentativa de melhorar o atendimento, toda a equipe, e ela também, agora vivem com o cansaço crônico que não tem data para acabar. "Eu foquei no trabalho, porque, se a gente ficar pensando muito no que acontece, já era."

Um dos momentos mais difíceis, ela lembra, foi quando um residente do hospital, jovem, se infectou com o coronavírus e ficou muito grave. "Como era no começo da pandemia, a gente não sabia bem como devia ser o tratamento, o que poderia fazer ou não", ela afirma. Depois de meses intubado, ele ficou bem.

A festa que outro funcionário do hospital recebeu quando teve alta da doença também foi uma história que marcou. Ele trabalha há 30 anos na unidade e é muito querido por lá, segundo Beatriz. "Parecia final de Copa do Mundo. A rua do HC ficou tomada, foi impressionante. Foi um momento em que todo mundo descarregou as energias gritando o nome dele."

A médica, formada para o atendimento de desastres, achava que uma experiência no Haiti tinha sido o grande momento da sua carreira. "Mas porque eu não tinha noção do tamanho de tudo isso que vivemos agora." Depois de 11 meses de trabalho intenso, ela diz que chorou ao ver a primeira dose da vacina sendo aplicada no Reino Unido: um momento simbólico de esperança. Mas o que está por vir é um período de batalha. "Ainda temos muito o que fazer."

O mérito do trabalho em equipe

Preparar o Iamspe (Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo) para a pandemia da Covid-19 foi um desafio, mas o planejamento permitiu que o trabalho fluísse, afirma o médico intensivista Caio Jaoude, 34. O mais complicado, segundo ele, foi preparar também a vida particular para a rotina. "É difícil falar como eu me sinto porque eu não faço a menor ideia."

A sinergia alcançada entre os profissionais da área médica, de enfermagem e fisioterapia, além de outras áreas de apoio, foi o saldo positivo que 2020 trouxe. "Hoje a gente não trabalha mais solitariamente, é em grupo. Essa troca, a capacidade de cada um ajudar com o que sabe, foi o grande ganho."

Enquanto a doença demandava isolamento social --inclusive dele mesmo, na tentativa de proteger familiares e amigos--, houve uma maior aproximação entre as equipes e os pacientes. Conhecendo a biografia e a evolução de cada um, os profissionais acabavam estreitando laços.

Por isso, ele diz, era difícil ver especialmente famílias inteiras internadas juntas na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) com o mesmo diagnóstico. Recentemente foi o caso de uma colega do Iamspe, que esteve internada junto da mãe e do pai. "O nosso desafio era tirar toda a família bem daqui." O pai, infelizmente, não sobreviveu.

Outra lembrança é de um casal de idosos que também esteve juntos na UTI. Quando melhorava, o outro piorava. Até que a mulher se recuperou e chorou ao ver o homem permanecer em tratamento. Ele não conseguiu superar. "Ficamos preocupados com ela, mas ela disse: 'tudo bem, o que importa é que eu consegui vê-lo pela última vez'."

Apesar dos momentos de dor, há alguns de esperança, como o caso de uma mãe que estava internada em estado grave, e o filho pediu à equipe do hospital que mostrasse a ela um louvor que ele cantava. Foi a primeira vez que a equipe fez isso, segundo o médico. Ela acordou, chorou e, em poucos dias, conseguiu sair da ventilação mecânica. "Isso mostra o quanto é importante o contato com o mundo externo. E isso nos tocou para caramba, foi emocionante."

"Apesar de tudo, da tecnologia, do conhecimento, da ciência, os pequenos gestos humanos são os mais valorosos e os que mais ajudam", afirma Caio. Aprender, reaprender, mudar e recomeçar são algumas das lições que a pandemia deixa. E, mesmo com o cansaço, ele diz, seguir fazendo mais que o possível até que a vida volte a se aproximar do normal.

Médico intensivista Caio Jaoude, 34, atende paciente com Covid-19 no Iamspe - Rubens Cavallari/Folhapress

Depois de 20 anos, o desafio do novo

"Eu tenho mais de 20 anos de formada, e esse foi o ano mais marcante da minha vida", afirma Elisabeth Rebouças, 54, gerente da Pediatria do Conjunto Hospitalar Mandaqui. Mesmo acostumada a lidar com a vida e a morte, estar diante do desconhecido foi um desafio.

Crianças evoluindo com sintomas diferentes, colegas adoecendo, o medo de contaminar a família. Foi necessário superar tudo isso, mais o sentimento de impotência, segundo ela, para seguir na missão.

Além dos sintomas da Covid-19 em si, ainda é complicado lidar com os efeitos psicológicos que a doença traz. "O paciente já ficava em pavor quando recebia o diagnóstico. Passar segurança de que ia dar certo mesmo sem a gente ter certeza e conseguir tratar os sintomas sabemos que não há tratamento específico para a doença era o nosso trabalho."

"Temos muitas memórias, não dá para dizer uma só como principal. São muitas lembranças boas e ruins, e o primeiro óbito dói tanto quanto o último." Marcou também a emoção de ver os pacientes deixando a UTI depois de longos períodos de intubação. Confiar no trabalho, nos estudos e sempre tentar fazer o melhor foi a receita para ter força de superar cada dia, segundo Elisabeth.

"2020 é o ano que não quer acabar. Eu quero dormir, acordar e pensar 'que pesadelo terrível que eu tive'." Para quando tudo isso tiver fim, ela tem dois desejos dos mais simples: paz e abraços.

A missão apesar do medo

Mesmo fazendo parte do grupo de risco devido à asma, Luis Araújo, 31, tomou a luta contra a Covid-19 como uma missão. "Medo não tem como não ter, mas quando você entende o seu papel, o resto se torna um pouco menor", afirma o fisioterapeuta intensivista da Beneficência Portuguesa de São Paulo.

"A gente entende que não tem como fugir: alguém precisa fazer algo, e foi isso o que a gente [profissionais de saúde] escolheu." E talvez essa dedicação tenha ajudado a salvar vidas, segundo ele. Isso não significa, contudo, que tenha sido fácil. Manter o psicológico em ordem e segurar a ansiedade eram um desafio. "Apanhar" da rotina e voltar mais forte era a meta.

"Mesmo com tudo isso o que aconteceu, a gente também tem muitas histórias boas, e isso acabava motivando a gente. Mesmo num ambiente de terapia intensiva, tivemos uma coleção boa de vitórias", afirma o fisioterapeuta. Ele diz lembrar com orgulho do primeiro paciente grave que se recuperou: depois da intubação, ele voltou a correr oito quilômetros por dia.

As tristes também deixaram marcas. Como quando um paciente era sedado antes de ser intubado e já sabia que o pior poderia acontecer. Ouvir as últimas palavras deles era pesado, afirma Luis. "Teve um paciente que a última frase que ele disse foi 'eu te amo' para a esposa, por telefone. Depois, ele só confirmou, com a cabeça, nos autorizando a prosseguir com o procedimento."

Manter a sanidade no meio disso tudo é difícil, segundo Luis. Especialmente porque, sendo da área da saúde, extravasar perto da família nem sempre é uma opção. "A impressão era de que a gente não podia demonstrar fraqueza, e isso dava uma carga ainda maior."

O juramento de ajudar e defender as pessoas é o que ajuda a guiar cada dia. Hoje ainda há medo, ele diz, mas também há espaço para orgulho do trabalho feito e do que está por vir. "Que a gente possa trazer o aprendizado de tudo isso e entender o que é mais importante, que é mover o mundo por quem a gente ama."

Fisioterapeuta intensivista Luis Araujo, 31, atua na Beneficência Portuguesa de São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

O reconhecimento da saúde

A pandemia da Covid-19 fez com que planos e metas mudassem: foi necessário passar a ver o mundo com outro prisma, diz Sandra Barbosa, 50, enfermeira líder da UTI do Hospital Sírio-Libanês. Com a saúde não foi diferente. Veio o reconhecimento do trabalho feito.

Superar a ansiedade inicial foi difícil, segundo ela. Muitos profissionais, com receio de contágio, chegavam a chorar para entrar no quarto de pessoas com a doença. "Como atuar nessa doença que pode nos levar à morte? Trabalhamos com a orientação, foi um trabalho de formiguinha para chegar ao empoderamento do profissional."

O combate à Covid-19 fez com que a equipe de saúde passasse a ser reconhecida como um todo, afirma Sandra. "Agora, mais que nunca, cada profissional da saúde teve reconhecido o seu valor. Ninguém trabalha sozinho, e com isso quebramos alguns paradigmas."

Do período mais intenso da pandemia, ela lembra da história de um casal que estava internado em quartos separados no dia em que completavam 50 anos de casados. Numa situação normal, eles não poderiam se encontrar. Mas a data valeu a exceção.

"Com todos os cuidados, levamos o marido para o quarto da esposa, e ele deu de presente um ramalhete de flores. Nesse encontro todo mundo estava chorando. Eles disseram que nunca iriam esquecer aquilo." Os dois se recuperaram.

Há também episódios simples que se mostram importantes para os pacientes e acabam inspirando. Como o dia em que uma idosa, depois de muito tempo internada, foi maquiada. "Quando ela se olhou no espelho, começou a chorar." Ou quando um homem conseguiu tomar um banho de chuveiro depois de um longo período no leito da UTI. "Ele falou que a gente não sabia o tanto que aquilo fez ele feliz."

"Quantas vezes a gente está correndo igual a um maluco no mundo e não valoriza um banho ou uma maquiagem. Coisas tão triviais têm outro sentido para as pessoas quando elas passam por isso, parece que dá um outro significado para a vida." "Mais forte": é assim que Sandra diz se sentir depois de um ano de luta sem fim.

Sandra Barbosa, 50, enfermeira líder da UTI no combate à Covid-19 no Hospital Sírio-Libanês - Eduardo Knapp/Folhapress
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