Empresas que produzem oxigênio medicinal têm emitido alertas para autoridades de saúde sobre os riscos de transformar unidades de pronto atendimento, como UPAs, em unidades de internação para pacientes de Covid-19.
O risco é o de que situações como as ocorridas em março em duas unidades de pronto atendimento na cidade de São Paulo voltem a ocorrer. No dia 19 de março, dez pacientes da UPA Ermelino Matarazzo (zona leste), tiveram de ser transferidos às pressas por ameaça de falta de oxigênio.
Três dias depois, em 22 de março, seis pacientes que estavam em outra UPA da zona leste, a Tito Lopes, em São Miguel Paulista, também foram transferidos após um defeito no sistema de oxigênio.
Dados mais recentes do governo estadual indicam um total de 23.854 pessoas internadas neste domingo (18) por Covid-19. Do total, 11.199 estavam em leitos de UTI (Unidades de Terapia Intensiva), e outras 12.665, em leitos de enfermaria. Na sexta-feira (16), eram registradas 24.792 internações, sendo 13.194 em UTI e 11.598, em enfermaria.
Em coletiva de imprensa na última sexta-feira (16), o governo estadual informou que houve um decréscimo de 1,4% ao dia em novas internações e de 0,8% ao dia em UTIs para pacientes moderados e graves de coronavírus. Essa evolução foi a justificativa dada para flexibilizar as medidas de restrição e permitir a abertura do comércio a partir deste domingo (18).
Entretanto, essa redução das ocupações dos leitos não levou à queda da produção do oxigênio medicinal, um dos principais fármacos usados para tratar pacientes de Covid-19. Empresas do setor informam que continuam com 100% de suas fábricas funcionando para atender a demanda.
Outra preocupação desses executivos é quanto a infraestrutura de onde eles entregam os produtos. Os problemas envolvem locais como tanques de estocagem de oxigênio e redes centralizadas para o gás, ou o fato de o espaço não possuir sistemas com a dimensão adequada para a expansão do consumo.
Newton Oliveira, diretor-presidente da IBG (Indústria Brasileira de Gases), com sede em Jundiaí (58 km de São Paulo), afirmou já ter comunicado diversos clientes, tanto públicos quanto privados, sobre riscos de abrir espaços sem o planejamento adequado.
“O grande aumento na demanda está fazendo com que os equipamentos instalados não suportem a pressão. Quando isso acontece pode até congelar o vaporizador [responsável por transformar o oxigênio líquido em gasoso] e, em último caso, levar oxigênio medicinal líquido direto para o paciente, podendo provocar sérios danos à saúde", afirmou.
Em nota, a White Martins afirmou "que vem alertando exaustivamente as autoridades competentes sobre os riscos de transformar unidades de pronto atendimento em unidades de internação". Segundo a empresa, a abertura desses leitos sem planejamento adequado traz impactos significativos na logística, na segurança operacional e na confiabilidade do abastecimento.
Gerente geral da Air Products, de Mogi das Cruzes (Grande SP), Marcus Silva afirmou que a situação é atípica. “Numa situação de guerra você faz o que o entorno permite fazer. Alguns locais realmente estão precisando de adaptação”, afirmou.
Por questões contratuais, as empresas não podem citar quais clientes enfrentam os problemas. E também são obrigadas a fornecer o produto mesmo se as condições dos locais não forem as mais adequadas, sob pena de risco de cometerem crime.
Mas, segundo as empresas, mesmo alertando sobre os riscos, o poder público pouco ou nada faz.
“Todo dia estamos trocando tanques. Principalmente em hospitais públicos. Já cheguei a mandar cartas avisando sobre as instalações inadequadas. Eu não posso deixar de entregar o produto sob pena de sofrer uma ação criminal por atentar contra a vida de terceiros”, disse o executivo da IBG..
A White Martins afirmou que para atender o consumo de oxigênio no estado de São Paulo, realizou 76 adequações de estocagem e substituição de centrais reservas por tanques de backup tanto para clientes da rede privada quanto da pública.
A médica infectologista Juliana Salles, integrante da diretoria executiva do Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo), afirmou que a velocidade de reposição do oxigênio precisou ser ajustada. Com isso, é comum, sobretudo em unidades menores, que os cilindros de oxigênio medicinal gasoso sejam utilizados.
Geralmente esses cilindros fazem parte de uma espécie de estoque estratégico e ficam numa base, longe dos leitos, como backup para serem utilizados caso o oxigênio dos tanques —em forma líquida— venham a acabar.
Segundo Silva, da Air Products, a retirada dos cilindros da base até dentro de um hospital pode mascarar a quantidade existente. Isso porque o oxigênio líquido armazenado nos tanques chega até os leitos por meio de linhas internas, num sistema de distribuição que se assemelha à rede do gás de cozinha canalizado. Levar um cilindro até um leito equivaleria a instalar um botijão de gás GLP num apartamento que é servido por gás canalizado.
“O sistema foi criado para não precisar levar o cilindro fora da área em que ele está. Quando se tira o cilindro da base muitas vezes esquecem o cilindro no leito de um paciente, algumas vezes vazio”, afirma.
Inadequado
O engenheiro civil Carlos Hernandes, professor da área de manutenção hidráulica e gases medicinais do IPH (Instituto de Pesquisas Hospitalares Arquiteto Jarbas Karman), afirmou que a estrutura de uma UPA não é dimensionada para prestar esse tipo de atendimento.
“Posso transformar? Posso. Porém, se você tem uma rede que foi dimensionada para um tipo de sistema, e está usando para outro, isso é um risco. E precisa ser um risco assistido”, afirmou.
Hernandes afirma não ser possível que os prédios passem por obras civis para serem totalmente adaptados. E que as adaptações podem ser gradativas, porém, não devem ser esquecidas, sem que revisões sejam feitas.
Segundo o especialista em engenharia hospitalar Lucio Flavio de Magalhães Brito, professor de pós-graduação em engenharia e manutenção hospitalar do Centro Universitário FEI, em geral, os sistemas de gases instalados nos hospitais deixam a desejar. Ele alerta sobre as transformações dos espaços sem planejamento, mesmo em hospitais já estruturados. “O leito de um quarto é dimensionado para uma vazão diferente de uma UTI”, disse.
Certificado pelo Colégio Americano de Engenheiros Clínicos, Brito mantém o canal no YouTube Escola de Engenharia Clínica. Enquanto a engenharia hospitalar cuida da estrutura física de uma unidade de saúde, a engenharia clínica volta seus olhos para os equipamentos instalados.
Brito afirma que durante muito tempo a infraestrutura elétrica foi uma das maiores preocupações nos hospitais, o que fez com que a rede de gases fosse preterida.
Resposta
A Secretaria Municipal da Saúde, da gestão Bruno Covas (PSDB), disse que as UPAs e os pronto socorros sob a administração municipal prestam atendimentos de alta complexidade e, até agora, quatro Hospitais Dia foram adaptados para também prestarem o serviço.
A pasta afirmou que as unidades não precisaram passar por obras civis para adequação de ramais de distribuição de gases e que os equipamentos já contavam com a canalização necessária.
Segundo a prefeitura, as UBSs (Unidades Básicas de Saúde) também contam com rede de ramais de distribuição de gases instalados, entretanto, os leitos não são usados para observação de pacientes com Covid-19.
Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde, da gestão João Doria (PSDB), disse que todos os hospitais estão abastecidos com oxigênio.
Segundo a pasta, por serem serviços de alta complexidade, as unidades contam com infraestrutura adequada para sua demanda, incluindo tanques de oxigênio e reposição regular dos gases medicinais.
A secretaria disse ainda que além de garantir o abastecimento da sua rede própria, também tem auxiliado as demais públicas. "Até agora, mais de 2.660 cilindros já foram distribuídos por todo o estado, sendo 2.000 adquiridos pelo governo estadual e os demais advindos de doações de universidades".
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