Empresário tem coleção de 8 milhões de discos de vinil em São Paulo

No exterior, Zero Freitas é reconhecido como o maior colecionador do mundo e não para de comprar

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São Paulo

Quando saiu do anonimato em reportagem do “New York Times” em 2014, o empresário brasileiro Zero Freitas, 69, já era considerado o maior colecionador de discos do mundo, com algo em torno de 4 a 5 milhões de exemplares. Sete anos depois, a coleção não para de crescer e já quase dobrou de tamanho, com cerca de 8 milhões de vinis.

O mais inacreditável é que apenas 5% deles já foram devidamente catalogados. Ou seja, o próprio dono da coleção conhece só o topo de uma montanha que certamente esconde tesouros inimagináveis para quem gosta de música.

Até hoje, Freitas brinca que não tem certeza se é o maior do mundo. “Sempre acho que pode ter alguém com mais. Na Índia, você tropeça em discos. No Egito, também. Digo que deve ter um cara com uns 10 milhões. Como eu era anônimo, eles também podem ser”, diz o empresário.

Fato é que o ritmo de catalogação caiu bastante pouco antes da pandemia. A equipe de 20 pessoas, incluindo 16 estagiários, é formada agora pelos quatro funcionários fixos, que trabalham em um galpão na Vila Leopoldina (zona oeste). Lá está a maioria absoluta dos vinis. Em casa, Freitas conta com “apenas” 100 mil vinis.

Trabalho sem fim

Em 2014, a estimativa de pessoas próximas ao empresário é de que fossem necessários 20 anos para identificar todos os milhões de discos. Como o volume de vinis quase dobrou, cresce sem parar e houve redução de funcionários, é difícil estimar se o trabalho terá fim algum dia.

Para se ter ideia do que há pela frente, o empresário diz que 90% das gravações que vieram dos EUA ainda estão em pallets. “Não tenho condições de ver.”

Sobre a velocidade na identificação do acervo, Freitas conta que a especialista que implantou o sistema de catalogação fez até um alerta no início. “Não contrate estagiário que curse música. Só de história ou biblioteconomia. Se for de música, eles começam a falar do assunto e só catalogam um por dia.”

Paixão começou com vitrola de 2ª mão

A paixão pelos discos começou na infância e ganhou um empurrão fundamental quando o pai de Zero Freitas comprou uma vitrola de um amigo. No pacote, um carrinho de ferro com 200 LPs, recheado de artistas como Ray Conniff, Ray Charles, Tony Bennett, Frank Sinatra e óperas que fizeram a cabeça do garoto de 7 anos.

“Esse amigo não era broncão como meu pai, era estudado. Comecei a engolir aquilo direto.”
A primeira mesada, aos 10 anos, também teve destino certo. “Fui a uma loja e comprei Beatles e Roberto Carlos. Veio na veia”, diz. Também na infância fez aulas de piano e teve contato depois com estilos variados.

“Era apaixonado por João Gilberto, bossa nova, Tom Jobim, MPB. Não tinha essa de falar não gosto disso ou daquilo”, conta. Tanto empurrão o levou à faculdade de música na USP, meio a contragosto da família.

No início da adolescência, uma certa timidez aproximou ainda mais o garoto dos “bolachões”. “Com 14, 15 anos, eu já era DJ em festas da família e ganhava dinheiro. Tinha pânico de dançar e ficava na mesa discotecando. Levava meus discos. Tinha uma coleçãozinha de 500 a 1.000”, afirma.

Mas lá atrás, antes mesmo da vitrola, ritmos variados já faziam parte da casa de Zero. A mãe dele era fã de cantores de sucesso na metade do século passado, como Emilinha Borba, Dalva de Oliveira e Silvio Caldas, além de ritmos que embalavam o povo, como tangos e boleros. “Ela tinha discos de 78 rotações. Música bem popular”, conta.

‘Compro por centavos’, diz Zero Freitas

O longo caminho entre os 200 LPs que chegaram com a vitrola até os 8 milhões de hoje ganhou via rápida com a expansão da internet. Zero Freitas conta que a sua coleção na época da faculdade, nos anos 1970, era de cerca de 10 mil exemplares. No fim do século, chegou a 100 mil. Nos anos 2000... “Conheço o Ebay. Começo a me comunicar com os sellers [vendedores]. Passo a comprar lotes [em leilões] principalmente no exterior”, explica.

Nos lotes, cada unidade sai por preço irrisório. “Faz muitos anos que não compro um disco de US$ 100. Nem de US$ 10. Compro por centavos, quando não é doação”, afirma.

Norte-americanos costumam deixar discos em testamentos para universidades, por exemplo. Mas essas instituições não recolhem a doação, e então indicam o contato de Zero Freitas, que manda buscar na casa da pessoa, onde ela estiver. Em contêineres, são despachadas para o Brasil. “Durante 40 anos, eu garimpava fisicamente em loja. Faz uns 15 anos que não ponho o pé em uma.”

Para auxiliá-lo na busca por oportunidades ao redor do mundo, o empresário conta com agentes que o ajudam a ampliar seu acervo gigantesco.

Entre as raridades mais óbvias, Zero Freitas tem cinco exemplares de “Louco Por Você”, o primeiro e renegado disco de Roberto Carlos. Não só isso: um dos itens tem ainda a dedicatória do “rei”, com assinatura antiga. Conta-se que o próprio cantor mandou, por muitos anos, recolher e quebrar cada um dos LPs prensados, por não ter gostado do resultado.

Num acervo tão vasto (e com muito ainda para ser catalogado), o conceito do que é raro é variado. Pode ser desde o disco de um cantor desconhecido dos anos 1990, indicado por amigo, até um “Revolution of the Mind”, de James Brown, com dedicatória do gênio descoberta ao acaso —e que veio numa “baciada”.

Da nova geração, Emicida é dos preferidos de Zero que, perguntado sobre qual das milhares de músicas indicaria para os atuais dias de trevas, disse a primeira que veio à cabeça. “‘Paciência’, do Lenine.”

'The New York Times' tirou empresário do anonimato

"O brasileiro magnata dos ônibus que está comprando todos os discos do mundo". Foi assim que o jornal "The New York Times" apresentou Zero Freitas para o planeta, há sete anos.

O interesse da publicação surgiu após uma pessoa até então misteriosa ter arrematado, em um leilão milionário, o acervo de um famoso colecionador de Pittsburgh (EUA). Essa mesma pessoa tinha comprado o estoque da famosa Colony Records, no coração de Manhattan, pouco antes da loja fechar as portas em Nova York.

José Roberto Alves Freitas autorizou o vendedor de Pittsburgh a divulgar seu nome somente depois que o último dos 15 cheques usados para parcelar a compra foi descontado. A reportagem do "The NY Times" foi publicada oito meses após as entrevistas. A partir daí, Zero foi procurado pela imprensa nacional.

Discos podem ser doados para biblioteca de escola

A coleção tem também porta de saída. O empresário afirma que gostaria de despertar a curiosidade musical entre os jovens.

“Eu ofereço 200 discos para um aluno que pretenda fazer uma discoteca junto com a biblioteca de sua escola pública. Eu faço a doação, imagina”, diz Freitas.

“Vou falar como coisa banal, mas são maravilhas. Gal Costa, Caetano, Gil, tenho mais de 100 de cada disco. O grande prazer é ver que, ao invés de ficarem arquivados, que sigam para uma escola dessas”, afirma.

Zero diz que o acervo também é aberto a pesquisadores. “Quem quiser me procurar para alguma pesquisa, tenho o maior prazer ajudar”, diz. Os contatos são por email: zero@armazemdaluz.com e acervo@armazemdaluz.com .

Música pede atenção, diz colecionador

O colecionador tem uma dica para quem pretende se deixar envolver pela música e descobrir o que, muitas vezes, passa sem ser notado ou é ouvido como uma massaroca de sons. “O que você diria para os mais jovens? Querido, ouça. Só fique quieto, como se fosse um budista. Morto. Deixe a música entrar pelos poros, não só pelo ouvido.”

Como exemplo, Zero Freitas cita o período em que chegou à faculdade de música da USP, em 1972. “O professor de composição e análise, Willy Corrêa de Oliveira, um gênio, dizia ‘vamos analisar essa peça’.

Às 8h, aula de análise musical, 20 pessoas na sala”, conta. “Um estudo de Chopin, para piano, dois minutos. E tocava uma coisa que eu mesmo tocava em casa. Todo mundo quieto, calado, ouvindo.

Acabava, tirava o LP e colocava no início de novo. Tocava seis vezes, antes de falar qualquer coisa. E perguntava, ‘o que vocês estão ouvindo?’ Uma mão fazia uma melodia diferente da outra! Uma coisa esquizofrênica”, conta, explicando que você pode ouvir e até tocar uma música sem ter percebido todas as nuances e variações dela.

Segundo o colecionador, o vinil exige essa atenção. “Qual o lado bonito do vinil? Que você levante, coloque na vitrola. Existe um rito. Praticamente, você fica compelido a prestar atenção.
No digital, você ouve e conversa”, fala.

Segundo Zero Freitas, um dos sonhos é que o novo local onde pretende guardar seu acervo tenha uma sala para audição de discos. “Onde as pessoas possam se sentar e ouvir música como eu ouvia na adolescência com amigos.”

O colecionador em números...

  • Cerca de 8 milhões de discos
  • Apenas 5% deles catalogados
  • Compra discos por cerca de US$ 0,20 (R$ 1)
  • Não pagaria mais que R$ 100 por um disco raro
  • Não entra em uma loja para comprar discos há mais de 15 anos
  • 5 exemplares de "Louco por Você", do Roberto Carlos, um deles autografado pelo rei
  • Oferece 200 vinis para estudantes que pretendam iniciar discotecas em suas escolas
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