Docerias de bairro adoçam por décadas vida na capital paulista

Paixão pela confeitaria passa de pai para filho nos estabelecimentos mais tradicionais da cidade

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São Paulo

Mesmo em tempos amargos, a vida pode ser doce nos bairros de São Paulo. São bolos, bombas, bolachinhas e beliscos que fazem bem ao paladar e deixam qualquer um lambendo os beiços ao se deparar com vitrines de comer com os olhos.

As docerias de bairro são assim. Trazem consigo gosto de infância e cativam pelo sabor artesanal. Em alguns casos, a paixão de criança é tão grande que faz o cliente virar confeiteiro. É o que aconteceu com Adalberto Taveira Melo, 70, dono da Rosa Amarela, no Cursino (zona sul). “Entrei com 15 anos. Vi o brilho dos doces na vitrine, como essa aqui que tenho hoje. Eu me espelhei e quis aprender essa profissão”, conta.

Adalberto Taveira de Melo (70, comerciante e empresário no ramo da confeitaria) e Ana Lucia Silva de Melo (70, comerciante e empresária no ramo da confeitaria) posam para foto na doçaria - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Depois de muito tempo de mão na massa, manejando com os mestres os macetes e maneiras de se transformar farinha em doce feito mel, Melo comprou com a mulher, Ana, em 1982, a Rosa Amarela, fundada em 1971. Para o especialista, o “fermento” que mantém a sua doceria em pé é a qualidade. “O produto tem que ser de primeira linha. Conseguir manter a sua linha em qualquer situação é o que faz o negócio crescer”, diz. E isso, no desejo de criança do doceiro, ainda se reflete na boa e velha vitrine colorida de deixar a clientela de olhos vidrados.

O negócio do doce se espalha feito caramelo na panela quente e, na Penha (zona leste), Verbênia Ribeiro Martins, 59, virou a Tia Bena, uma doceira reconhecida por um talento que também foi despertado ainda na infância, bem longe de fornos industriais da capital paulista.

“Via minha avó fazendo biscoito de polvilho em forno à lenha, cheio de madeira. Sou da Bahia, ela fazia na fazenda e era tudo muito gostoso”, conta.

No caminho até o doce, ela foi costureira, trabalhou com menores infratores na antiga Febem e, durante um período de desemprego, transformou os pães de mel que já fazia em casa em uma espécie de carro-chefe do então novo negócio em família.

“Com toda a minha história, olha onde eu tô”, e mostra uma lata comemorativa de um famoso leite condensado, que traz a receita de seu pão de mel no rótulo. “Fui uma das seis escolhidas entre cem no Brasil”, diz.

Quem trabalha com cuidado e carinho sabe trilhar a receita que pode fazer o sucesso entre vizinhos virar algo conhecido no país inteiro. “Não é em série. Se me pede um bolo, eu vou fazer um bolo para você”, diz. “Os meus doces fazem relembrar da avó, da mãe. Não é mexeu, está pronto”, conta.

Há 59 anos, estabelecimento aposta em doces feitos na hora

Aqui é tudo artesanal. Não trabalho com nada pré-pronto, nada pré-preparado”. É assim que Alfred Fischer, 60 anos, destaca as receitas aprendidas com o seu pai, Josef Alfred, que veio da Áustria para o Brasil em 1948.

Vitrines da doçaria Fischer - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Em 1961, o pai de Alfred tentou tocar a vida com um restaurante, que no ano seguinte foi transformado em doceria, a sua verdadeira vocação. “É um know how pesado, forte por assim dizer”, conta o filho, hoje responsável pela Doçaria Fischer.

Entre as muitas receitas tradicionais, o bolo de chantilly é um clássico que se destaca. “É o melhor chantilly de São Paulo”, diz Alfred.

“É importante ressaltar também há quantos anos está aqui, nesse mesmo local”, afirma a mulher de Alfred, Shirley Rocha Fischer, 54. “Não. Um pouquinho só mais para baixo, porque, devagar, as formigas estão levando. Era 4 cm para cima”, brinca o marido.

O fato é que já são 59 anos no mesmo endereço na rua Gentil de Moura, no Ipiranga (zona sul), onde, na década de 1950, o terreno servia ao Circo François. “Sempre foi um lugar de alegria”, diz o proprietário.
O casal se conheceu na própria doceria, onde Shirley podia comer o dobosh, um bolo húngaro, com massa sem fermento e recheio de caramelo, o seu favorito. Os dois se casaram há 25 anos e tiveram um filho, hoje com 17 anos. “Será a terceira geração”, afirma.

Entre os clientes, o que não falta é bom motivo para voltar à doceria, mesmo depois de décadas. O comerciante Edson Yamada, 50, foi vizinho e lembra de atravessar a rua ainda na infância para saborear os produtos da Fischer. “Só compro bolo aqui”, diz. “Gosto da bandeja de petit four [bolachinhas com chocolate]. Não é enjoativa, não é tão doce. O bolo, a mesma coisa”, afirma.

Loja deu certo e abriu filial em Portugal

A Confeitaria La Bassani é um negócio de famíília que começou em 1994 no Tatuapé (zona leste). As receitas fizeram tanto sucesso que hoje são degustadas até mesmo em Portugal, onde foi aberta uma unidade em 2019.

Para Irlene Bassani, 51 anos, a fama da confeitaria foi criada no boca a boca entre os clientes. “A gente tem uma clientela fixa, que vem e volta toda hora”, diz.

As grandes redes não conseguem ter recheios muito diferenciados, porque todo mundo ter que ter o mesmo ingrediente

Irlene Bassani

confeiteira

O carro-chefe e marca registrada da confeitaria é o bolo gelado, tradicional em festas de aniversário. “Minha mãe sempre fez. É um bolo branco. Praticamente, não tem recheio, mas em alguns vai. É banhado em uma mistura de leite condensado e leite de coco”, conta.

Embora a tradição seja importante, Irlene lembra que a criatividade é fundamental nesse ramo. “Toda hora, a gente está criando alguma coisa. Um doce, um bolo novo, algo diferente para se manter. Não adianta ter só a mesma coisa”, afirma.

Segundo ela, a diferença das docerias de bairro é a diversidade. “As grandes redes não conseguem ter recheios muito diferenciados, porque todo mundo tem que ter o mesmo ingrediente no país todo. E nem sempre você encontra”, afirma. “Aqui, cada recheio é único, tudo feito de forma artesanal. É mais difícil fazer isso em uma rede”, explica.

Fazer sucesso por décadas em um ramo onde muitos se aventuram e não conseguem se estabelecer é desafiador. Pode trazer também recompensas que vão além do lucro imediato. Mais que dinheiro, o trabalho na doceria vira parte importante da história das pessoas. “Tenho clientes de todo jeito. Para alguns, já fiz a festa de um ano, de 15 anos, de noivado e de casamento”, conta Irlene.

Doceria faz a sua história no Socorro desde anos 70

Os frequentadores de docerias de bairro se sentem em casa quando se deparam com as vitrines vistosas e as guloseimas que despertam a gulodice em qualquer um que passe pela frente. Em muitos casos, a visita já virou tradição que é transmitida, com afeto, aos filhos.

Na região do Socorro (zona sul), a comerciante Soraia Peterson, 56, não perde a oportunidade de visitar a Doceira Nevada, que existe desde 1978. “As outras são muito industrializadas. Essa daqui ainda mantém a qualidade. Isso faz muita diferença. Gosto de todos os doces”, afirma.

A empresária Andressa Souza, 35 anos, não perde a oportunidade de visitar a Doçaria da Vila, na Vila Mariana (zona sul), quando está em São Paulo, na vizinhança da casa de sua sogra. É lá que ela toma café e come o bolo de laranja de que tanto gosta, enquanto o filho aproveita o de chocolate. “É tudo bem caseiro, muito agradável. É gostoso”, diz.

Técnica de enfermagem, Lúcia Aureliano, 57, diz que, para si própria e para os amigos, compra na Fischer. “O gosto é bem suave. Tem o strudel, que gosto bastante. Tanto o de maçã, quanto o de nozes por cima.”

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