Quando o termo patrimônio cultural é mencionado, muitos certamente têm como referência uma edificação antiga ou um monumento.
Entretanto, a lista dos mais de 4.000 bens materiais e imateriais tombados em São Paulo inclui alguns inusuais, tais como um posto de gasolina na Aclimação, uma cratera em Parelheiros, uma árvore no Sacomã, um túmulo dentro da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, muro do cemitério do Araçá, alambrado do estádio do Juventus e uma garagem vertical no centro, e por aí vai.
A lista ainda inclui o virado à paulista, carnaval e o samba, integrantes dos chamados patrimônios de natureza imateriais tombados em São Paulo.
O tombamento de bens é previsto por lei federal desde 1937. Quem analisa e dá aval aos tombamentos no Estado de São Paulo é o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), e no município, o Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo).
Dos mais de 4,2 mil itens tombados na capital, apenas 184 são do órgão estadual. Dos tombamentos feitos pelo órgão municipal, mais de 2 mil estão no centro da cidade. A lógica é simples: foi naquela região que a cidade nasceu.
É no centro, mais precisamente na Bela Vista, que atua a Appit (Associação dos Proprietários, Protetores e Usuários de Imóveis Tombados), que dá auxílio a quem pretende realizar tombamentos.
“A história é isso, mostra quem fez, quando fez e por qual motivo fez. Quando você consegue entender isso e a sua importância e tradição, aí sim vê a relevância disso”, afirma a advogada Celia Marcondes Smith, vice-presidente da associação.
Segundo explica a também advogada Mariana Chiesa, vice-presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB de São Paulo e doutora em direito do estado pela USP, O conceito de patrimônio cultural engloba todos os elementos que fazem referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.
“É o legado de um povo, e sua preservação garante a memória coletiva da população, conferindo-lhe identidade”, explica.
“Por isso, pode englobar desde bens imóveis até práticas culturais”, complementa.
Mais recentemente, os adeptos do assunto —urbanistas, sociólogos, advogados e afins— defendem que a preservação é uma forma de provocar um impacto menor no ambiente, provocado pela produção de novos bens. A lógica é a de preservar um imóvel histórico e tombá-lo, é melhor do que criar uma nova edificação por provocar um menor impacto no meio ambiente.
Ativista
Desde muito jovem, a advogada Celia Marcondes Smith é adepta da preservação de patrimônio. Seu gosto pelo assunto foi reforçado após morar na Europa.
De volta do Brasil, decidiu adquirir um casarão antigo que era de seu avô e recuperá-lo com investimentos do próprio bolso. “É o resgate da história e uma ação para o futuro. Isso pra mim não tem preço”, afirmou.
Mais tarde, decidiu adquirir outro imóvel, na Bela Vista (centro de SP), de 1914 e já tombado. Após restaurar o local, montou ali o seu escritório onde advoga nas áreas de direito da família e cível.
“Muita gente acha chique ter quadros antigos, coleção de carros antigos, joias e outras tantas coisas. Porém, alguns dizem que ter um imóvel antigo é um mico. Não é de forma alguma. Um povo sem história é um povo sem referência’, afirma.
Sempre inquieta, decidiu, em 2015, criar uma associação que tivesse como objetivo auxiliar, gratuitamente, a todas as pessoas que tivessem interesse em preservar um imóvel e entrar com pedidos de tombamento. Foi aí que nasceu a Appit (Associação dos Proprietários, Protetores e Usuários de Imóveis Tombados).
“Nem sei contar quantos tombamentos já conseguiram. Certamente foram dezenas”, afirma, ao ser questionada a respeito de quantos processos já teve êxito.
Segundo revela, nem sempre as pessoas entendem a importância da preservação. “Existia e ainda existe uma dificuldade de mostrar para as pessoas o valor do patrimônio histórico. Por outro lado, há a especulação imobiliária, que é gritante e passa por cima da nossa história, do que sobrou da nossa história”, afirma.
O mais recente processo em que a Appit esteve envolvido foi a abertura do processo de tombamento da sede da Escola Panamericana de Arte e Design, em Higienópolis (centro).
A associação, da qual ela é vice-presidente, reúne 12 pessoas na diretoria, além de vários voluntários de diferentes áreas.
A principal atuação da associação é a de esclarecer as pessoas e como pedir o tombamento de um bem. “Explicamos como montar um processo, o que precisa ser apresentado como prova, as razões e motivos que justificam o imóvel a ser tombado”, afirma.
Oportunidade
Segundo a advogada Mariana Chiesa, vice-presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB de São Paulo e doutora em direito do estado pela USP, o tombamento de um bem, sobretudo um imóvel, limita o que o proprietário pode fazer com o imóvel.
“Isso pode ser entendido como um problema ou como uma oportunidade, a depender do caso e da atuação do proprietário diante do tombamento”, afirma Mariana Chiesa, vice-presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB de São Paulo e doutora em direito do estado pela USP.
Segundo explica advogada, sócia do escritório Manesco Advocacia, a legislação tem avançado no sentido de buscar estratégias para que o tombamento seja associado as medidas para ajudar os proprietários as investirem no bem.
Entre os mecanismos citados por ela estão as isenções de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e ISS (Imposto Sobre Serviços) previstas no Plano Diretor Estratégico de São Paulo.
“É necessário também que o proprietário tenha conhecimento sobre qual é o nível de tombamento ao qual sua propriedade está submetida. A partir de cada caso, poderá estabelecer estratégias diferenciadas para o seu imóvel diante do tombamento. Um exemplo é o desenvolvimento de estratégias de retrofit de imóveis associadas à preservação da fachada”, afirma a advogada.
O retrofit é uma forma de restaurar e readequar um imóvel, seja ele em que estado estiver, para poder receber novos usos, residencial ou comercial.
Outra oportunidade, segundo a advogada, é a possibilidade de obter o selo de valor cultural emitido pelo Conpresp, o que confere reconhecimento ao valor comercial, residencial, cultural, institucional, arquitetônico ou gastronômico de um estabelecimento por meio de uma placa e uma certificação.
Exemplos
Cratera da Colônia
- A cratera, de 3,6 km de diâmetro, é o mais antigo patrimônio da cidade, formada a partir de um meteoro que caiu ali há mais de 20 milhões de anos. Fica em Parelheiros (zona sul)
Túmulo de Julius Frank
- Jazigo guarda o corpo do professor alemão, que morreu em 1841, e fica dentro da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP
Sino da Independência do Brasil
- A peça, de 1,70 metro de altura por 1,70 metro de diâmetro foi feita com bronze misturado a 18 quilos de ouro, em 1820. Pertence a Igreja de São Geraldo, em Perdizes (zona oeste)
Garagem América
- Foi o primeiro estacionamento vertical do país a usar estruturas metálicas, novidade na década de 1950. Fica na rua Riachuelo, no centro
Alambrado do Juventus
- O pitoresco estádio do Clube da Mooca também têm o campo, arquibancadas internas, muro e entrada principal e bilheterias tombados
Castelinho
- A edificação, que fica na avenida Brigadeiro Luis Antonio, é uma das primeiras em estilo art noveau na cidade de São Paulo e tem mais de 100 anos
Carnaval paulista
- O tombamento é das práticas carnavalescas, que traduzem saberes, modo que é feito e a relação de pertencimento que essa atividade emana
Posto de gasolina
- Localizado na Aclimação, o posto é um dos primeiros a serem construídos na capital, em 1930, ainda numa época que rodavam poucos carros por aqui
Hidroavião Jahu
- É o único do gênero no mundo. Feito em madeira, e com quatro lugares, ele foi comprado em 1926 por João Ribeiro de Barros, um paulista da cidade de Jaú. Com o avião, ele atravessou o atlântico, percorrendo 3.200 km da Itália ao Brasil, em 12 horas de vôo. Atualmente está no Museu da Aviação
Tombamentos | Para entender
O que é um tombamento?
- É um ato que busca preservar bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados
O que pode ser tombado?
- Tudo o que é de interesse da memória coletiva, tais comofotografias, livros, mobiliários, utensílios, obras de arte, edifícios, ruas, praças, cidades, regiões, florestas, cascatas, entre outros
Quem pode efetuar um tombamento?
- Os governos federal, estadual e municipal, por meio de órgãos de defesa do patrimônio, ou ainda por meio de leis.
O ato do tombamento é igual à desapropriação?
- Não. O tombamento não altera a propriedade de um bem; apenas proíbe que venha a ser destruído ou descaracterizado.
Um bem tombado pode ser alugado ou vendido?
- Sim. Desde que o bem continue sendo preservado.
Qualquer pessoa pode pedir um tombamento?
- Sim. Basta apresentar formalmente o motivo esclarecendo a importância de se preservar.
Como é um processo de tombamento?
- Após o envio da documentação, é feita uma análise técnica. Se o órgão (federal, estadual ou municipal) aprovar, o proprietário é notificado.
O que é proibido?
- Demolições e as reformas sem prévia autorização,
Um imóvel tombado pode ser reformado e usado para qualquer finalidade?
- Para realizar qualquer tipo de reforma ou restauro, é necessária uma análise, que levará em conta o nível de preservação do bem. Ela só é autorizada após análise técnica. O uso e eventuais adaptações só serão liberados se respeitar as características originais.
O que acontece se o dono demolir o imóvel?
- Ele pode ser obrigado a reconstruir ou restaurar o bem tombado pagando do próprio bolso, ou, se for destruído, pagar até dez vezes o valor do imóvel.
4,2 mil
é o número de bens tombados na capital
2.132
são os bens tomados na região central
Fontes: Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo), Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico), APPIT (Associação dos Proprietários, Protetores e Usuários de Imóveis Tombados) e Mariana Chiesa, vice-presidente da Comissão de Direito Urbanistico da OAB de São Paulo e doutora em direito do estado pela USP
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