Futebol é a tabelinha encarnada entre deuses e diabos. Mistério universal que dá sentido à vida na terra do sol, nas montanhas de gelo, sufocado na vitória, urrado no degredo.
Com emaranhados subjetivos na busca pelo objetivo, futebol não faz sentido em todos os sentidos. É farejado com o olhar, tateado com o olfato, visto com a alma, tocado com o ouvido.
Anterior ao cinema mudo, expressa e impressiona por gestos globais que tocam metrópolis alemãs, neorrealidades italianas, campineiras ponte-pretanas fãs de "O Guarani". Salvador ali, derrotado aqui, futebol parou guerras e foi parado por elas, ganhou campos antes de o rádio levá-lo às salas, aos bares das praças.
Esperança do sofrido, palanque do narciso, futebol é o esperanto não planejado, parido a fórceps, no gingado. Que nasceu, cresceu e deu liga desde os primórdios até todo o mundo do mundo todo gritar não, em uníssono, à maldita Superliga.
Futebol é a simplicidade traduzida por léxico diverso, verso, reverso, complexo. O pau é de metal, mão de tinta na linha é pá de cal. Matador é o mocinho que desperta o amor da criancinha; xerife perde a linha, desce a bota acima da medalhinha.
Banheira, à frente na grama, morre o ataque, drama. Culpa do adiantado quarto zagueiro. Que, à vera, beque de sobra, é o primeiro da linha. Como é que sobra quem é escalado em linha? Ponta joga primeiro e segundo atos. E ainda escuta um bocado quando não fecha o meio. Central, à brasileira, joga sempre mais à direita. Na hora que o bicho pega, o sistema sempre tira a ponta esquerda, fecha tudo sem escrúpulos e defende-se no centrão. Porteira que passa um boi, passa uma boiada.
Confuso é pouco. Futebol é muito louco. Quem não recebe é tratado por mercenário, quem recebe milhões é amador não remunerado, quem apanha pede desculpas por estar errado, o torcedor bate para exigir o seu direito de distorcer a realidade usando a jurisprudência que futebol é campo de batalha aberto à insanidade.
Trocar de casa, voltar para casa, mudar de ares, por aqui, além-mares, ir e voltar de lares, não é promiscuidade. Ao contrário, enche-se o peito para brindar o "profissionalismo", a oferta e procura do livre mercado. Que só é livre após rescindido o contrato. Seria o futebol a profissão mais antiga do mundo?
Fernando Pessoa: "Eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz".
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