Capital paulista tem 100 mil alunos da rede municipal com dificuldade de acesso à internet

Mesmo com tablet e chip doados pela prefeitura, muitos não conseguem usar o aparelho para estudar por falta de sinal de rede

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São Paulo

Moradora de Engenheiro Marsilac, extremo da zona sul de São Paulo, Alice, 7, já poderia ter recebido o tablet e o chip de conexão à internet fornecidos pela Prefeitura de São Paulo para estudar desde maio deste ano. Sua mãe, a auxiliar de enfermagem Rosane Pedra, 29, decidiu não pegar o equipamento. “Aqui não tem conexão com internet, pra que?”, diz.

O caso de Alice, infelizmente, não é único. Ela é uma das cerca de 100 mil crianças matriculadas na rede municipal de ensino de São Paulo com dificuldade de acesso à internet, segundo cálculos da própria Secretaria Municipal de Educação.

Vez ou outra, Alice e a prima Clara, 9, usam os celulares de suas mães para tentar se conectar e fazer as tarefas escolares. Mesmo indo em morros altos de Engenheiro Marsilac, nem sempre isso é possível, já que a torre de celular mais próxima dali fica a quilômetros de distância, no meio do Rodoanel. “No máximo dá um pontinho”, diz Clara.

As primas Alice, 6, e Clara, 8, sobem num dos pontos mais altos de Engenheiro Marsilac, no extremo da zona sul de São Paulo, para tentar sinal de celular - Ronny Santos/Folhapress

A prefeitura afirma ter investido R$ 600 milhões para entregar os tablets com chips para os estudantes. Apesar de a pandemia ter começado em março do ano passado, e, consequentemente, o ensino remoto, o início da entrega dos aparelhos só ocorreu a partir de maio deste ano, após sucessivos atrasos. A meta da prefeitura é entregar 505 mil aparelhos, porém, até agora, só 200 mil foram entregues aos estudantes, menos da metade do previsto (40%).

“Da mesma forma que a gente pensava em água e eletricidade como direitos básicos de cidadania, a pandemia mostrou que esses direitos também envolvem a internet como um bem público”, afirma Lorena Barberia, pesquisadora do departamento de ciência política da USP (Universidade de São Paulo) e da Rede de Pesquisa Solidária.

O problema é que nem sempre alguns direitos elementares atendem a alguns pontos da capital mais risca do país, tal como acontece, por exemplo, numa comunidade que fica nos arredores da avenida Souza Ramos, entre os distritos de Cidade Tiradentes e Iguatemi, na ponta da zona leste. Por lá, é possível ver alguns pontos de esgoto a céu aberto.

Muitos dos alunos que moram ali estudam no CEU Inácio Monteiro, na vizinha Guaianases. Vários receberam os tablets com chips para acesso à internet, mas muitos simplesmente não conseguem usar pela dificuldade de sinal. É o caso de João Vitor Aguiar Santos, 15. Ele disse ter recebido o tablet há dois meses, mas prefere continuar usando o celular. “Esse chip que veio nele não funciona, não dá conexão”, afirma.

Joao Vitor, 15, no ponto mais alto da casa onde mora em Cidade Tiradentes; sem conseguir acesso de internet pelo tablet, ele acaba usando o smartphone para fazer as tarefas da escola - Ronny Santos/Folhapress

Quem tenta usar o aparelho por lá, sofre. “A conexão é tão lenta que demora muito para assistir as coisas e ver as aulas”, diz Emilly, 10, filha de Suelany Apparecido de Souza, 29. “Ela e meu outro menino de 12 pegaram há um mês, mas só se for por wi-fi”, diz a mãe.

Paloma Cristina Santos Florencio, 28, diz que colocou o filho, Bryan, 6, para assistir a aula e o garoto, impaciente com a lentidão, pediu para ir brincar na rua.

Especialistas ouvidos pela reportagem explicam que cobertura de sinal de rede de celular pode ser diferente de uma operadora para outra dentro de um mesmo bairro. Isso explica o motivo pelo alguns alunos conseguem sinal de celular e dados —mesmo que de baixa intensidade— com os smartphones, enquanto alguns tablets podem não funcionar.

Além de Marsilac, onde sinal celular é praticamente nulo, em localidades tais como Vargem Grande, também na zona sul, a cobertura inexiste. Por lá, as crianças também receberam os tablets com os chips, porém, muitas famílias pagam planos de internet fixos para irradiar o wi-fi. “Aqui se não for internet paga esquece”, afirma o impermeabilizador Junio Santos, 30, pai de Eloá, 7. “É muito bom o tablet, eu gosto, né pai”, diz a garota.

“As políticas públicas de inclusão digital devem levar em conta não só acesso a dispositivos. A posse do tablet, por exemplo, é só uma parte do processo de inclusão digital e promoção do uso cidadão da internet”, afirma o pesquisador Tarcizio Silva, da Ação Educativa.

Necessidade

Além da questão da educação, outras ações básicas e até triviais para alguns —tais como pedir uma pizza, um remédio na farmácia ou marcar uma consulta ou até mesmo pedir socorro à polícia— são praticamente impossíveis para quem mora em regiões de difícil acesso de internet móvel.

Há regiões em que essas coisas só podem ser feitas se a pessoa tiver internet fixa, ou telefone convencional ou via satélite.

Há dez meses com uma farmácia em Marsilac, Edson Augusto Alves, 39, afirma ter sido questionado por vizinhos se de fato ficaria na localidade, já que a última —e única— instalada ali ficou só três meses.

“Se não fosse aqui eles precisariam ir para Parelheiros. A distância é grande. Atendemos clientes que estão a 20 km daqui”, diz.

Ele atende os clientes pelo WhatsApp, telefone fixo ou recados de vizinhos e é preciso sinal.

Edson Augusto Alves, 39, decidiu reabrir única farmácia de Engenheiro Marsilac; contato com clientes é feito pelo WhatsApp, telefone fixo (quando funciona) ou mesmo recados - Ronny Santos/Folhapress

Morador do bairro vizinho de Embura, Davi Magno dos Santos, 41, é entregador de delivery, algo que inexiste na região. “Nem dá pra pedir socorro se for assaltado”, afirmou.

A situação afeta até as questões de trabalho. É o caso de Roberto Tiago Degrande, 40, programador e diretor da ONG SOS Marsilac.

“Você só está conseguindo falar comigo porque não resido em Marsilac. Durante a semana eu moro perto de Interlagos e é por isso que estou conseguindo contato comigo”, afirmou.

Degrande vai aos finais de semana para Marsilac. “Como conseguir trabalhar, estudar ou mesmo pedir socorro numa situação dessas?, questiona.

Iguatemi tem pior sinal

Um estudo da Abrintel (Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações) indica que o distrito de Iguatemi, no extremo da zona leste da cidade de São Paulo, é o local com pior oferta de infraestrutura de telecomunicações de toda a capital.

Por lá, em média, 10.639 pessoas precisam disputar o sinal de uma única antena, número nove vezes acima do ideal, de no máximo mil pessoas por antena. Na outra ponta está Barra Funda, na zona oeste, onde cada antena atende 186 pessoas.

Essa diferença explica o motivo pelo qual a internet via dados é extremamente rápida para alguns, enquanto para outros nem sinal de celular há. Ou seja, a potência é tão disputada que a cobertura até existe, mas é insuficiente para atender a todos.

Uma lei do Executivo em trâmite na Câmara de Vereadores pode mudar essa situação. Chamada de Lei das Antenas, ela define as regras de instalação dessas estruturas, tais como locais em que elas possam vir a ser instaladas, altura e limites de radiação. E prevê ampliar o sinal de celular e de internet, inclusive nas regiões onde o sinal quase não existe hoje..

“Temos uma oportunidade de mudar esse cenário e fazer da conectividade uma ferramenta de desenvolvimento econômico”, afirma Luciano José Stutz, 46, presidente da Abrintel.

Mesmo se a chamada Lei das Antenas vier a ser sancionada pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB) em breve, ela ainda precisa ser regulamentada. Com isso, a medida só deverá surtir algum efeito prático na vida das pessoas daqui a um ano.

Resposta

A Prefeitura de São Paulo informou que trabalha para ampliar o acesso de internet na cidade de São Paulo.

Segundo a gestão do prefeito Ricardo Nunes, além do projeto da Lei das Antenas, que tem dispositivos que privilegiam a instalação de antenas em áreas periféricas, estão sendo feitos investimentos na expansão de pontos gratuitos disponíveis na cidade.

Entre eles está o Wifi Livre SP, atualmente com 1.088 pontos e que deve ofertar 20 mil até 2024.

A prefeitura informou ainda que os 130 telecentros estão sendo reabertos gradativamente, com 35% da capacidade e respeitando as regras sanitárias do combate à Covid-19. Até esta sexta-feira (16), 25 estavam abertos, número que passará para 50 na segunda-feira (19).

A Secretaria Municipal de Educação informou que todas as escolas da rede possuem internet instalada. Entretanto, como mencionado no projeto de lei, "há localidades que não são priorizadas para receber sinal de celular, como aldeias indígenas, áreas urbanas isoladas, lugarejos, núcleos, povoados, projetos de assentamento e vilas, onde residem muitos de nossos estudantes”.

Ainda segundo a pasta, essa situação existe, sobretudo, nos distritos de Grajaú (zona sul), Brasilândia (zona norte), e em vários pontos da zona leste, tais como Vila Jacuí, Sapopemba, Parque do Carmo, José Bonifácio, Cidade Tiradentes, Iguatemi, Lajeado e Jardim Helena.

Em relação aos tablets, a Secretaria Municipal de Educação afirmou ter seguido todos os ritos necessários, inclusive os ajustes indicados pelo Tribunal de Contas do Município para contratação dos aparelhos. A pasta ainda diz que também fornece material impresso os estudantes.

Já a Secretaria Municipal de Saúde informou que todas as unidades de saúde da rede possui sinal de internet móvel e fixo e que não há registros de reclamações em relação à velocidade no acesso para realizar os procedimentos digitais.

A pasta também reforçou a importância do projeto da Lei das Antenas. “O projeto de lei que dispõe sobre a instalação de equipamentos destinados à operação de serviços de telecomunicações será fundamental na melhoria do acesso à internet em regiões da cidade onde os munícipes têm dificuldades para acessar os diferentes tipos de serviço eletrônico, entre eles, os da área da saúde, como uma consulta por teleatendimento”, informou.

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