Na ensolarada manhã da última quarta-feira (6), Rogério Attorri, 89, parou o seu carro na rua São Domingos, no tradicional bairro do Bixiga, no centro da capital. Vestido de forma impecável e com uma peculiar boina, ele pegou a sua bengala e, caminhando lentamente, entrou na padaria São Domingos para comprar o seu filão, tal como faz quase todos os dias.
“Eu era criança e nunca saía daqui. Não é agora que vou deixar de vir. Eu não sei se é a farinha, a receita, não tem explicação”, afirma, quando questionado sobre o motivo pelo qual sai da Consolação todos os dias para comprar seus pães na Bela Vista.
A São Domingos faz parte de um seleto grupo de padarias com mais de 100 anos de atividades na cidade de São Paulo. No caso, o estabelecimento aberto por Domingos Albanese, italiano da Calábria, abriu as suas portas em 1913, embora ele já fizesse pães antes disso.
“Mesmo com bengala e com as costas travadas eu venho. É hábito, desde criança”, afirma o empresário Pedro Hiller, 73.
Apesar de receber muitos clientes que compram ali há dezenas de anos, Victor Albanese, 30, da quinta geração da família, afirma que essa tradição é passada de pai para filho. “Muitos vêm e trazem os netos, que também acabam gostando”, afirma.
Nessas padarias mais tradicionais não é possível, por exemplo, tomar um café no balcão ou pedir um x-salada, algo que está fora de cogitação nos cardápios de lá. E essa segmentação é justamente um dos ingredientes de sucesso que fez com que esses empreendimentos continuassem de portas abertas mesmo após duas guerras mundiais e pandemias (gripe espanhola e agora, a do novo coronavírus).
“Quem vem para um lugar desses quer encontrar justamente o ambiente daquela época e encontrar os produtos que vendemos aqui há mais de um século”, afirma Leonice Albanese, 61.
E a tradição não é um componente que atrai apenas das pessoas com mais idade, segundo Alexandre Franciulli, 51, chef e padeiro que está à frente da padaria 14 de Julho, fundada em 1897. “Tem uma moçada que vem redescobrindo e têm gostado, sobretudo dos antepastos e da fermentação natural”, afirma.
Há mais de dez anos Franciulli faz participações no programa “Mulheres”, exibido pela TV Gazeta, ensinando receitas típicas italianas. A padaria que ele dirige foi fundada pelo avô dele, Rafaelli Franciulli.
Além de abrir a 14 de Julho, Rafaelli também comprou, no ano de 1960, a Italianinha, padaria aberta em 1896 por Filippo Ponzio. Sandra Franciulli, 41, irmã de Alexandre, comanda a Italianinha com outras três irmãs. “Não é incomum ver algumas pessoas se emocionarem ao entrar aqui e lembrar dos avós”, afirma.
Além dos tradicionais pães, que atravessam gerações, ela conta que o fermento natural utilizado é o mesmo.
Numa época em que pouco se falava de empreendedorismo, Filippo Ponzio, além da Lucância, que depois veio a ser a Italianinha, abriu outra padaria no bairro do Bixiga, a Basilicata, na 13 de Maio, em 1914. Há quatro anos a tradicional padaria ganhou uma repaginada e ampliou os seus negócios, e agora oferece um ambiente bem mais sofisticado, com direito a empório e restaurante, apesar de ainda manter a ambientação do século passado.
Quem ganhará uma ampla repaginada em breve será a também centenária Carillo, na Mooca, comandada pelos irmãos Guilherme, 37, e Gabriel, 36, bisnetos do fundador da marca, Raphaelle, que abriu a sua padaria em 1912. O endereço atual foi aberto pelo avô deles, Paschoal, morto em 2008.
Segundo Guilherme, a proposta é de ampliar os negócios sem necessariamente deixar a essência e tradição de lado. A reforma deveria ter sido feita em 2020, porém, foi barrada pela pandemia do novo coronavírus.
A mais antiga em atividade
O domínio das padarias de origem de imigrantes italianos na região central, mais especificamente no Bixiga, se explica pelo fato de que essa foi a região para onde iam a maior parte dos imigrantes ao chegar em São Paulo.
Com o tempo eles se espalharam para outras regiões, como o Brás e também a Mooca.
Porém, o título de padaria mais antiga em atividade na cidade de São Paulo é dos patrícios portugueses. Cravada na região da Sé, a padaria Santa Tereza é a mais antiga em atividade na cidade de São Paulo, prestes a completar 150 anos.
Inicialmente ela funcionou atrás da igreja da Sé, antes de ir para o endereço onde está hoje. Alguns dos itens do cardápio resistiram ao tempo, como é o caso da canja e da monstruosa (e deliciosa) coxa creme.
“Tem cliente que pede sempre”, afirma a empresária Juliana Maturama de Castro, 39. “Outro item que não pode faltar é o copo americano”, complementa.
A família de Juliana é tradicional no ramo de padarias, porém, não tem ligação com os fundadores da Santa Tereza. Eles estão à frente do negócio desde 1995 e, antes mesmo de assumirem a padaria, sabiam a carga de tradição e simbolismo que a padaria carrega.
Quase sete em cada dez clientes da padaria são de pessoas ligadas aos órgãos do poder Judiciário instalados nos arredores. A ausência dos clientes provocada pela suspensão de trabalho presencial e também de turistas levou a uma queda de faturamento de 95%, o que forçou o enxugamento de parte do quadro de funcionários.
“O trânsito de pessoas parou. Diferente das padarias de bairro, que até tiveram aumento de faturamento já que podiam permanecer abertas e as pessoas iam até lá fazer parte das suas compras, a nossa clientela é de quem está na rua ou trabalha na região”, afirmou.
A reabertura da economia ainda não foi suficiente para que o estabelecimento voltar a funcionar aos domingos algo que não acontecia antes da pandemia, segundo Juliana.
Fermentos também são centenários
Tão ou mais antigos do que as padarias centenárias da capital são os fermentos usados por algumas delas. Conhecido pelos brasileiros como fermento natural, trata-se de uma técnica conhecida há milhares de anos e que foi trazida ao Brasil pelos imigrantes portugueses e italianos. Por conter apenas farinha e água, sem adição de aditivos nem conservantes, esse tipo de fermento é considerado muito mais saudável.
Mais recentemente, e, sobretudo, durante a pandemia, esse fermento virou modinha e é chamado de vários nomes: do afrancesado levain, passando pelo levito para os italianos por levito, sourdough pelos ingleses ou massa madre pelos espanhóis. Para os imigrantes ele tem um sugestivo nome: pé. Ou pezinho, dependendo de quem o pronuncia.
Apesar de ser o mesmo fermento –que, alimentado, multiplica e é misturado à massa dos pães– e suas sobras dão origem a um novo fermento, podendo ser renovado por séculos, o modo de lidar com ele mudou. Antigamente eles eram armazenados em caixotes de madeira, medida não permitida pelos códigos sanitários.
O mesmo pé da Italianinha é o da 14 de Julho, fundada pelo bisavô de Sandra, Rafaelli Franciulli.
Alguns outros também nutrem o pezinho, como é o caso da São Domingos, e Basilicata.
Outras o abandonaram e retomaram o seu uso, como é o caso de Guilherme Carillo, 37, da padaria que leva o sobrenome da família na Mooca. “Antes meu bisavô fazia tudo com fermentação natural. Porém, teve uma época que ele abriu mão para usar o fermento biológico, que é muito mais prático”, afirma.
Ele afirma que somente após a morte do avô é que ele e o irmão, Gabriel, decidiram voltar a produzir a partir do fermento natural. “Ele [fermento natural] dá muito mais trabalho, porém, é muito mais saudável e dá aquele azedinho no pão característico. Meu irmão se especializou bastante e ele é quem cuida”, afirma.
Diversidade
Segundo Fábio Biteli, docente de pós-graduação no Senac EAD (ensino a distância), essas padarias são a exceção e representam um pequeno nicho do negócio de panificação. Há tempos, a regra é a de um conceito mais amplo do que um local que venda apenas pães.
“A gente tem uma cultura na cidade de São Paulo de tudo funcionar 24 horas. E o formato, a tipologia das padarias na cidade de São Paulo é daquelas que não vendem apenas pão, mas ser um lugar onde você pode tomar café da manhã, almoço, jantar, buffet de sopas, lanches, pizzas, comprar carne para churrasco, carvão, gelo e por aí vai. Virou um modelo de negócios quase que parecido com um supermercado”, afirmou.
Uma das pioneiras nesse segmento foi a Galeria dos Pães, nos Jardim América (zona sul), seguida por endereços como Bella Paulista, na região da avenida Paulista, e das redes St. Etienne e Dona Deôla.
Nomes trazem influências diversas
Estrela, princesa, flor, bela, rainha, grão, princesinha, trigo, bread, bakery, pane e por aí vai.
Se antigamente os nomes das padarias remetiam apenas aos sobrenomes dos fundadores, e homenagem a santos ou para lembrar de cidades, estados, regiões ou países, sobretudo da origem dos imigrantes, com o passar do tempo eles foram sofrendo outras influências, segundo explica Alexandre Salvador, professor de marketing da pós-graduação da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) de São Paulo.
“Os nomes mais tradicionais trazem memórias afetivas e nostalgia. Atualmente vemos o crescimento de lojas de pão com nomes em inglês e francês, trabalhando um preço por quilo mais elevado e com uma proposta declarada de pães de qualidade superior, algumas nem vendendo pão francês”, afirma.
Presente há 60 anos na zona norte, a Padaria Princesa dos Pães, na Vila Medeiros, sempre teve esse nome, segundo o gerente Adelino dos Santos Ferreira, 42. “Eu nem tenho ideia porque desse nome”, diz.
Elias Oliveira Marques, 32, gerente da padaria Estrela Santa Cecília, no centro, afirma que não sabe o motivo pelo qual o estabelecimento leva esse nome, já que foi adquirido pelo avô. “O meu avô era baiano, quando ele chegou já era assim. E acabou deixando até para não atrapalhar a clientela”, afirma.
E é justamente a influência da migração nordestina em São Paulo o motivo pelo qual os substantivos e adjetivos mais carinhosos anexados aos nomes das padarias, embora os estudiosos indiquem que eles estão mais relacionados às lanchonetes.
“Certamente tem uma referência mais sentimental e romântica”, afirma Fábio Biteli, docente de pós-graduação no Senac EAD (ensino a distância).
Para Biteli, que leciona na pós-gradução “Gestão e Negócios em Serviços de Alimentação – foco em resultados”, muitas vezes, ao batizar o nome do negócio com adjetivos e substantivos carinhosos, o proprietário não pensa em marketing. “Certamente tem essa coisa com a coisa do conforto, do que chamamos hoje do comfort food”, diz.
No livro “Padarias – Nomes que Fazem História & Suas Curiosidades”, o escritor Augusto Cezar de Almeida Neto diz que por intermédio do nome de uma padaria pode-se descobrir um pouco da história do estabelecimento.
A publicação traz um levantamento feito com 3.000 padarias do estado de São Paulo entre os anos de 1930 a 1980. Segundo a publicação, os nomes predominantes indicam a origem dos donos, homenagem ou indicação de localidade, nomes de pessoas da família ou citação a um tipo de pão.
Procurado, o Sindicato dos Industriais de Panificação e Confeitaria de São Paulo informou não ter um levantamento específico a respeito dos nomes dos estabelecimentos.
Padarias centenárias | Histórias
Santa Tereza, 149 anos
- Fundada pela família dos portugueses Teixera e Vaz, originalmente ela funcionava na rua Santa Teresa, atrás da Catedral da Sé. Só depois de 1947 ocupou o endereço atual. Entre as receitas centenárias e que até hoje podem ser encontradas por lá estão a canja e a coxa-creme. Há 15 anos o piso superior, que antes abrigava um depósito, passou a ser ocupado por um charmoso restaurante.
- praça Doutor João Mendes, 150, Centro Histórico
Padaria Italianinha, 125 anos
- Fundada por Filippo Ponzio, já se chamou Lucânia (como também é conhecida a região de Basilicata) e funcionava na rua do Glicério. No endereço atual, ela ocupava até a metade da rua Rui Barbosa. Com o alargamento da via, hoje fica onde antes era o depósito. Desde a década de 1960 é tocada pela família Franciulli. O destaque é o pão recheado com linguiça.
- rua Rui Barbosa, 121, Bela Vista
Padaria 14 de Julho, 124
- Fundada por Rafaellil Franciulli, um mecânico que ao chegar ao Brasil percebeu que tinham poucos carros e decidiu fazer pães, ela permanece no mesmo endereço desde que foi fundada. A data é em referência ao dia de abertura do estabelecimento, em 1897. Além de todos os quitutes italianos, ostenta como diferencial o cannoli, o “melhor do Brasil”, segundo Alexandre, da terceira geração dos Franciulli.
- rua 14 de Julho, 76, Bela Vista
Padaria Carillo, 109 anos
- Rafaelle Carillo era um provador de vinhos (sommelier é um termo francês) na Itália que, ao imigrar para o Brasil, veio trabalhar em padaria com seus três irmãos. Ela já funcionou em outros dois endereços na zona leste. Hoje ela é tocada por Guilherme e Gabriel, integrantes da quarta geração de Rafaelle. O diferencial é o pão italiano filão
- rua Demétrio Ribeiro, 29, Mooca
São Domingos, 108 anos
- Domenico Albanese já fabricava pães antes de abrir a São Domingos, em 1913. A padaria é sinônimo de resistência. Para evitar um saque durante a Revolução de 1924, Albanese distribuiu produtos de graça. Em 1968 os então donos chegaram a receber uma notificação de desapropriação para dar espaço ao Minhocão. Após mobilização de autoridades, o Minhocão é quem teve de mudar o seu trajeto.
- Rua São Domigos, 330, Bela Vista
Padaria Lisboa, 108 anos
- Desde que foi fundada pela família de imigrantes portugueses Martins, ela ocupa o mesmo endereço na zona leste. Apesar de nunca ter mudado de endereço, já passou por várias adaptações e reformas, apesar de ainda manter o estilo original. É comandada pela quarta geração da família. Além de um extensa lista de itens como pizzas e sanduíches, produz os tradicionais doces portugueses e entre os destaques estão as empadinhas.
- praça Silvio Romero, 112, Tatuapé
Basilicata, 107
- Outra criação de Filippo Ponzio (que abriu a Lucânia, hoje Italianinha). Nos primórdios, além dos pães, o local era também um empório popular, além de um endereço conhecido para abrigos de imigrantes e tinha até cocheira para colocar cavalos. Após uma ampla reforma, em 2017, ficou bem mais sofisticado, com direito a empório e restaurante, apesar de ainda manter a ambientação do século passado.
- rua Treze de Maio, 596, Bela Vista
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.