A Covid-19 já fez mais de 370 mil vítimas fatais no Brasil desde o início da pandemia. O dado é alarmante e coloca em o país em segundo lugar no ranking de nações com mais óbitos pela doença, atrás apenas dos Estados Unidos. Apesar de grave, a estatística esconde que, por trás desses números frios estão pessoas com famílias, sonhos e histórias interrompidas.
Muitas famílias foram devastadas pelo coronavírus, com mais de uma perda em um curto espaço de tempo. Foi assim com o publicitário Marcos Henrique Botelho, 36 anos, que perdeu o pai e o irmão para a Covid em menos de um mês. O irmão, Luiz Guilherme, de 31 anos, morreu no dia 8 de janeiro, enquanto o pai, Marcos Antônio, 69 anos, faleceu no dia 25. "Foi terrível. Parecia um filme de terror. Um pesadelo que iríamos acordar e que nada disso teria acontecido", afirma o publicitário.
Morador da Freguesia do Ó, na zona norte da capital paulista, Botelho explica que seu irmão tinha um problema de hepatite autoimune, razão pela qual tinha que ir com frequência ao hospital para fazer tratamento. Ele acredita, inclusive, que foi em uma dessas idas ao médico que Luiz Guilherme acabou se contaminando pelo coronavírus.
"Foi uma luta para arrumar UTI [Unidade de Terapia Intensiva] para meu irmão. Os problemas dele agravaram de um jeito muito complicado. Ele foi para a AMA [Assistência Médica Ambulatorial] de Pirituba e, depois de muito custo, o levaram para a UTI do hospital [Dr. José Soares] Hungria", lembra o publicitário.
O pai foi internado no dia 17 de janeiro no hospital Sorocabana, na Lapa (zona oeste) e, no dia seguinte, já foi transferido para o da Brasilândia, na zona norte, onde acabou sendo derrotado pelo vírus.
Segundo Botelho, as duas mortes são fortemente sentidas pela mãe, Soraia, 58 anos. "Tem sido muito difícil para ela. Perder um filho de 31 anos e um marido com quem foi casada por 40 anos não é fácil. Está sendo uma barra", relata.
Pais morrem em intervalo de 40 minutos
O produtor rural Evandro Marquesim, 44 anos, morador de Jundiaí (58 km de SP), perdeu os pais em um intervalo de apenas 40 minutos.
Aristeu Marquesim, 69, e Sheila Marquesim 64, morreram no dia 5 de abril. Considerando namoro, noivado e casamento, eles ficaram juntos por 50 anos e 16 dias.
"Em março, minha mãe mandou mensagem para mim: 'hoje faz 50 anos que eu comecei a namorar seu pai'. Passou 16 dias, meu pai e minha mãe faleceram com 40 minutos de diferença. Uma explicação para isso? Se alguém tem, pode falar para nós", diz Evandro.
As mortes de Aristeu e Sheila deixaram um vazio onde moravam, ao lado das casas de Evandro e da outra filha, Erika, 42 anos. "Agora a casa está ali abandonada, tudo bagunçado. O cachorro do meu pai está num desespero só, que a gente não sabe o que faz. São coisas que marcam muito", desabafa.
Segundo Evandro, Aristeu e Sheila foram internados no dia 21 de março em um hospital da cidade e no mesmo dia foram intubados. A mãe teve uma piora no quadro, com comprometimento nos rins, fígado e problemas neurológicos. O pai saiu da intubação dois dias depois, mas voltou a piorar. "Levaram para fazer uma tomografia e descobriu-se que criou um coágulo entre o rim e o intestino. Aí acabou estourando no domingo à tarde. Infeccionou o corpo todo, mas o coração dele não aguentou. Quando foi 8h, meu pai veio a falecer. E a minha mãe, depois, faleceu às 8h40."
'Estamos vivendo um dia após o outro'
A família da auxiliar administrativo Sônia Pessoa Viana, 34 anos, é mais uma das que foram esvaziadas pela pandemia. Moradora de Paraisópolis, na zona sul, ela perdeu dois em dois meses.
O primeiro que não resistiu às complicações provocadas pelo vírus foi o tio Renaildo, de 66 anos. Diabético, ele teve complicações ligadas à doença e, por esse motivo, foi a um hospital para se tratar. Sônia acha que foi em uma dessas visitas que ele pegou Covid.
O outro tio, Valdete, 66, também fazia tratamento por causa das sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral). Após passar mal, foi levado a um hospital, quando os médicos constaram comprometimento de 60% dos pulmões. Ele morreu dias depois.
O que ficam, agora, são as memórias. Admirador de pássaros, Renaildo será lembrado pelo canto das aves. "A casa dele é cheia de passarinhos até hoje. Minha tia não conseguiu se desfazer", diz. Já Valdete era marcado pelas anedotas. "Ele contava piadas que a gente ria, mas que não tinham graça. As perdas são difíceis. Estamos vivendo um dia após o outro", comenta.
Vírus leva junto a alegria da família
"Perder pessoas queridas faz com que a gente perca a alegria, perca um pedaço da gente". É assim que a funcionária pública Ana Laura Cardoso Oliveira, 28 anos, moradora de Itapevi (Grande SP) resume a situação de sua família, que teve duas mortes por Covid-19.
Com 68 anos, o avô dela, Edvaldo, foi o primeiro a morrer por causa do vírus, no início de março. Duas semanas depois, foi o tio, Edson, que tinha "50 e poucos anos" --segundo Ana, ele não gostava de dizer a idade.
Quando Edvaldo morreu, Edson compareceu ao rápido enterro. Em seguida, foi à empresa onde trabalhava como vigilante para entregar o atestado de óbito do pai. Ao chegar, desmaiou e foi levado a um hospital, onde foi constatado que ele também estava com Covid.
Ana Laura que Edvaldo e Edson eram pessoas agradáveis, que alegravam os ambientes. "Meu avô adorava contar histórias. Sempre falava de quando veio da Bahia para São Paulo e lembrava do tempo em que foi motorista de ônibus."
O tio Edson será lembrado pela música. "Ele gostava de cantar. Cantava muito louvor. Era ótimo cantor. Se tivesse tentado carreira, acho que teria conseguido."
Sem os parentes, Ana diz ter focado no trabalho para superar as perdas. "Não consegui abraçar ninguém da família", lamenta.
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