Descrição de chapéu Opinião

A bola é um detalhe: Auto-obituário

São Paulo

É corriqueira no jornalismo, ainda que lúgubre, a preparação para a morte. Se algum personagem de maior relevo vive problemas de saúde ou passa dos 60 anos, é bem provável que já exista um material elaborado sobre sua trajetória, prontinho para publicação assim que for assinado o atestado de óbito.

Coronel, lateral esquerdo do Vasco nas décadas de 50 e 60, não era exatamente um desses personagens. Não que lhe faltasse importância, mas reconhecê-la em 2019 exigia memória e sensibilidade incomuns.

O próprio Vasco se limitou a soltar uma "nota de falecimento" de três parágrafos, na quinta, quando ele morreu. Não foi necessário mais do que isso porque o ex-jogador já tinha, de certa maneira, preparado o próprio obituário, jargão jornalístico para os textos biográficos post mortem.

Antonio Evanil da Silva, o Coronel, sofria para marcar o amigo Garrincha - Adriano Vizoni - 27.nov.19/Folhapress

Explico. Na semana passada, o colega Toni Assis, que escreve para este Agora e também para a Folha, resolveu ir até Porto Real, no estado do Rio de Janeiro, para ouvir o ex-lateral. Não havia nenhum motivo muito específico além do já citado, ouvir.

Toni é dessas figuras das quais é impossível desgostar, uma espécie de Zeca Pagodinho friorento. De Ubatuba a Xerém, ele está sempre com sua japona à mão.

Coronel o recebeu alegremente ("achei que ninguém se lembrasse de mim") e recordou o tempo em que tentava marcar Garrincha. Seu Vasco mais ganhou do que perdeu do Botafogo, mas parar o Mané na bola era tarefa impossível.

"Eu puxava pela camisa", contou o vascaíno, que evitava os pontapés no ponta-direita rival: "Como eu ia fazer isso com um amigo?".

Coronel recordou sua trajetória e a contou a Toni na semana passada - Adriano Vizoni - 27.nov.19/Folhapress

Dias depois de finalmente receber alguém disposto a lhe ouvir, Coronel partiu. Nem deu tempo a Toni para publicar a reportagem programada inicialmente. Ela acabou virando um obituário, quase que redigido a quatro mãos entre o repórter friorento e o ex-jogador.

Para não cair na pieguice, evitarei a tentação de dizer que o velho Coronel foi embora depois de falar o que tinha para falar.

Marcos Guedes
Marcos Guedes

33 anos, é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e, como o homenageado deste espaço, Nelson Rodrigues, acha que há muito mais no jogo do que a bola, "um ínfimo, um ridículo detalhe". E-mail: marcos.guedes@grupofolha.com.br

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