Descrição de chapéu Opinião

A bola é um detalhe: Acordes para a história

Sequência de notas musicais enfileiradas por Dorival Caymmi em 1947 nunca foi tão repetida quanto em 2021

São Paulo

Dorival Caymmi lamentava não ter sido o autor de “Ciranda, Cirandinha”. Para o compositor, sua arte atingia o ponto máximo na comunhão com o povo, alcançava toda a sua potencialidade quando se tornava uma espécie de entidade popular —em certa medida dissociada do autor original, embora sempre ligada a ele de maneira umbilical.

O baiano encontrou esse sucesso ao conceber “História pro Sinhozinho”. Levou algum tempo, mas as notas musicais que brotaram de sua mente em 1947 hoje estão no imaginário coletivo e são repetidas à exaustão, em geral sem que se tenha ideia da fonte genial.

A criação se deu em uma internação um tanto forçada no sítio de Jorge Amado, que enclausurou o amigo para que ele terminasse canções encomendadas para um espetáculo teatral. Em Nova Iguaçu, perto do Rio de Janeiro, Caymmi trabalhou na trilha sonora da peça “Terras do Sem Fim”, adaptação de Graça Mello de um livro de mesmo nome escrito por Jorge.

Trancado no sítio de Jorge Amado em Nova Iguaçu, Dorival Caymmi compôs uma canção que passou por transformações múltiplas - Manoel P. Pires/Folhapress

“História pro Sinhozinho” narra a noite de um garoto que, “na hora em que o sol se esconde e o sono chega, […] vai procurar a velha de colo quente”. Sinhá Zefa, então, “canta quadras”, “vai murmurando histórias para ninar” e acaba, ela mesma, “por cochilar”.

A música ganhou popularidade e nova versão em 1977, quando a Rede Globo decidiu levar à televisão as histórias do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, de Monteiro Lobato. Em adaptação produzida para a trilha, Sinhá Zefa virou Sinhá Nastácia e “História pro Sinhozinho” se tornou “Tia Nastácia”.

A gravação original começava em uma sequência instrumental. Na remodelagem, Caymmi decidiu acompanhar os acordes com um singelo acalanto: “Lalalaralaraliralá, lalalaralaraliralá, lalalaralaralaralaralá, lalalaralaralaralaralá”.

Você provavelmente ouviu tais acordes, nos últimos dias, em variante acelerada, letrada e zombeteira: “O Palmeiras não tem Mundial, o Palmeiras não tem Mundial, não tem Copinha, não tem Mundial, não tem Copinha, não tem Mundial”.

A trajetória completa de "História pro Sinhozinho", do sítio de Jorge Amado aos estádios de futebol, passando pelo "Sítio do Pica-Pau Amarelo", pode ser recordada nesta reportagem de 2019.

Marcos Guedes
Marcos Guedes

33 anos, é jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero e, como o homenageado deste espaço, Nelson Rodrigues, acha que há muito mais no jogo do que a bola, "um ínfimo, um ridículo detalhe". E-mail: marcos.guedes@grupofolha.com.br

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