Descrição de chapéu Coronavírus

Pandemia transforma policiais e fiscais em caçadores de baladas

Profissionais da saúde e segurança se unem para impedir aglomerações e o funcionamento irregular de estabelecimentos

São Paulo

Agentes de fiscalização da linha de frente ao combate à Covid-19 mudaram suas rotinas de trabalho desde o início da pandemia, em março do ano passado, e se sentem frustrados, um ano depois, por constatar que algumas pessoas agem atualmente como se o vírus não mais existisse, ao se aglomerarem em festas clandestinas.

O negacionismo e desrespeito às medidas protetivas, segundo representantes de órgãos da saúde e da segurança, se acentuaram após as festas de fim de ano. A consequência disso foi o aumento de infecções, mortes e a superlotação de leitos hospitalares, por causa do novo coronavírus -- resultando em medidas mais restritivas, adotadas pelo governo estadual, ao impor a "fase emergencial" do Plano São Paulo, iniciada no dia 15 e que se estende ao menos até o próximo dia 30.

O Agora entrevistou representantes das Vigilâncias Sanitárias, estadual e paulistana, das guardas da capital paulista e região metropolitana, além do Procon e da Polícia Civil. Estes órgãos realizam ações conjuntas de fiscalização para verificar o descumprimento de medidas preventivas e, também, monitoram e combatem aglomerações, principalmente em festas clandestinas.

Maria Cristina Megid, diretora técnica do Centro de Vigilância Sanitária estadual, disse que o trabalho do órgão, inclusive antes da Covid-19, é o controle de risco e promoção da saúde. Com a pandemia, as ações se estenderam também para o novo coronavírus.

Há um ano, com a confirmação do primeiro caso de infecção pelo vírus no Brasil, no fim de fevereiro, e com o aumento de mortes na Itália, cerca de dois meses depois, a diretora notou na ocasião que os paulistanos respeitavam efetivamente o isolamento social. As ruas da capital paulista, como constatado pelo Agora à época, permaneciam quase desertas, em qualquer horário do dia ou da noite.

Porém, com o passar dos meses, a população gradativamente retornou aos espaços públicos e, após o Natal e Ano-Novo, a situação "saiu de controle". "Por causa da Covid-19, mudamos inclusive alguns focos de fiscalização. Chegamos a fazer ações em oficinas mecânicas, algo que não ocorria antes da pandemia”, destacou a diretora.

Segundo o governo estadual, gestão João Doria (PSDB), a taxa de isolamento social mais alta registrada na capital paulista foi de 59%, em 29 de março do ano passado. Já nesta última semana, o isolamento na cidade chegou a 43%.


Maria Cristina acrescentou que, além de festas clandestinas, comerciantes agindo com má fé são constantemente monitorados. “Há comércios, como perfumarias por exemplo, que tentam se passar por mercados, colocando uma prateleira com alimentos, ou produtos de higiene [no local]. Lojas de departamento também estão fazendo isso, que é uma desonestidade. Com um monte de gente nas UTIs [Unidades de Tratamento Intensivo], sem leito, estimular as pessoas a se deslocarem, mantendo lojas irregularmente abertas, é falta de sensibilidade, falta de humanidade”, desabafou.
A Vigilância recebe denúncias de irregularidades, além de aglomerações, por telefone e também monitora redes sociais, que são monitoradas constantemente . Outra mudança na rotina da diretora é a troca de informações com os setores de inteligência do Procon-SP e das polícias Civil e Militar, por meio das quais as ações conjuntas são arquitetadas.

Entre março e dezembro do ano passado, 140 mil inspeções foram feitas no estado, resultando em 1786 autuações, feitas pela Vigilância Sanitária estadual. Somente entre janeiro e fevereiro deste ano, esses dados cresceram, respectivamente, para 220 mil e 4679, representando altas de 57% e 161%.

Clientes se aglomeram em uma loja de departamentos, por volta das 13h do último dia 10, na região central da capital paulista. Este tipo de comércio não pode funcionar durante a fase vermelha do Plano São Paulo - Alfredo Henrique/Folhapress

A Vigilância Sanitária da gestão Bruno Covas (PSDB) atua em parceria com a estadual e também destaca os mesmos problemas de desrespeito de algumas pessoas às medidas protetivas ao novo coronavírus, que também provocou a mudança de rotina de agentes e gestores.

Luiz Artur Caldeira, coordenador da Covisa (Coordenadoria de Vigilância em Saúde), mudou sua rotina de trabalho, que se estende até por 14 horas diárias, desde o início da pandemia, por causa do monitoramento de aglomerações em festas irregulares, principalmente. Suas equipes atuam conjuntamente com agentes estaduais de segurança, GCM (Guarda Civil Metropolitana) e Procon.

“Depois que a Covid-19 deixou de ‘ser uma novidade’, que assustava as pessoas, tenho a impressão de que está tendo uma banalização da pandemia, das mortes, das internações. No início, havia a preocupação de ficar doente. Atualmente, há mais questionamentos sobre as estatísticas de leitos ocupados do que uma preocupação em ficar doente. Vejo em algumas pessoas a naturalização da pandemia, deixando-as mais expostas a infecções”, avaliou.

Por causa da insistência em se realizar eventos clandestinos e, consequentemente, aglomerações, Caldeira acrescentou crer que sua mudança de rotina, em monitorar festas, vai se manter por tempo indeterminado em São Paulo.

Ciro Alexandre, que atua na linha de frente da Vigilância Sanitária da Prefeitura de São Paulo, afirmou que a conscientização das pessoas, em adotar medidas preventivas, é fundamental. “Sem a ajuda da população, nós não conseguiremos, não vamos dar conta de vencer o vírus, estamos sobrecarregados”. A rotina dele também mudou, pelo fato de atuar em fiscalizações no período noturno.

Alexandre, que é autoridade sanitária, acrescentou observar a falta de bom senso e desrespeito às normas sanitárias em todas as esferas sociais e faixa etárias. “Inclusive, já levei ‘carteirada’ desde juíz [presente em aglomerações] até pessoas à margem da lei. Já foram flagrados [nas fiscalizações] desde bailes da terceira idade, clandestinos, a baladas com jovens”, afirmou.

Ele destacou também o "perfil peculiar" de pessoas que "desrespeitam de forma gritante" as medidas de prevenção ao novo coronavírus.

"A postura dessas pessoas, quando flagradas descumprindo as medidas protetivas, é sempre agressiva, de confrontação com as forças de segurança, sanitárias e da saúde. É um perfil clássico do 'desobediente de norma sanitária', que é negacionista, que não se preocupa com a saúde coletiva e está ali confrontando as regras e sendo agressivo. Se a situação continuar assim [aglomerações constantes], pode ficar fora de controle [a disseminação do vírus]", desabafou.

Ambas as vigilâncias sanitárias ainda destacaram receber denúncias falsas sobre aglomerações, feitas com o intuito de ludibriar as fiscalizações, direcionando-as para locais distantes de eventos clandestinos reais. O mesmo é feito em redes sociais, com a divulgação de eventos "fake", também com endereços falsos ou até mesmo inexistentes.

Blitze da Polícia Militar na praça Silvio Romero, no bairro do Tatuapé, zona leste de SP - Ronny Santos/ 15.março.2021/Folhapress

Carlos César Marera, diretor de fiscalização do Procon-SP, afirmou que a pandemia também fez o órgão expandir suas ações, obrigando-o a atuar no período noturno, junto com as vigilâncias sanitárias e polícias, principalmente no combate a festas clandestinas.

As fiscalizações se estenderam para o monitoramento de estabelecimentos cheios de pessoas, algo impensável antes da pandemia, segundo o diretor, pois isso não colocava as pessoas em risco antes do coronavírus. "Agora, com a possibilidade de infecção, aglomerações em bares e restaurantes, por exemplo, podem ferir o Código de Defesa do Consumidor. Também fiscalizamos se as pessoas estão de máscara", explicou.

Um flagrante recente, com essas características, ocorreu no último dia 14, em um cassino de luxo na Vila Olímpia, na zona oeste da cidade de São Paulo, no qual estavam presentes o atacante Gabigol, do Flamengo, e o funkeiro MC Gui. Além de a prática de jogos de azar ser proibida no Brasil, os frequentadores foram encontrados desrespeitando regras sanitárias, na véspera do plano emergencial do governo paulista.

"Parece que a pandemia faz algumas pessoas, não sei, terem a tendência justamente a trangredir a norma. Vivemos uma situação caótica, com hospitais sem vagas, mortes a cada dois minutos em São Paulo e algumas pessoas ainda agem de forma inconsequente, realizando este tipo de evento clandestino. O momento exige cautela e que festas não sejam realizadas, para evitar a disseminação do virus", afirmou Marera.

Entre 26 de fevereiro e o último dia 14, o Procon fiscalizou 1.070 estabelecimentos comerciais na capital paulista, dos quais autuou 129.

Até esta sexta-feira (19), o governo estadual havia registrado 66.798 mortes decorrentes da Covid-19, que infectou 2.280.033 pessoas. O maior número de pacientes internados no estado de São Paulo, também por causa do vírus, foi registrado nesta quarta-feira (17). Segundo a gestão Doria, 25.880 pessoas ocupavam leitos, das quais 11.109 de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo).

Cidade do ABC usa até helicóptero para localizar aglomerações

A GCM (Guarda Civil Municipal) de São Bernardo do Campo (ABC) ainda mantém os trabalhos realizados antes da pandemia, como resguardar o patrimônio público e fazer rondas na cidade. Após a chegada da Covid-19, porém, parte do efetivo também foi remanejado para monitorar exclusivamente eventos clandestinos.

Segundo Carlos Alberto dos Santos, secretário da Segurança Urbana, as festas ilegais são monitoradas pela internet, ou por meio de denúncias anônimas. “Como a cidade também conta com muitas chácaras e áreas de proteção ambiental, adotamos um novo critério de monitoramento, usando um helicóptero para identificar pontos de aglomeração”, afirmou.

A aeronave foi usada pela primeira vez, no último dia 14, e localizou uma aglomeração em um clube de golfe e em uma chácara, às margens da represa Billings, no bairro Riacho Grande.

Neste mesmo bairro, no último dia 10, a GCM acabou com uma festa clandestina que, segundo a prefeitura, aglomerava cerca de mil pessoas. Ao todo, 158 delas foram detidas e levadas à delegacia.

Everton Campos, inspetor chefe de São Bernardo do Campo, participou deste flagrante. Ele afirmou que a guarda chegou ao local por terra e também por meio de embarcações. “Este caso foi importante, pois a repercussão dele fez com que outros eventos clandestinos não ocorressem”, afirmou, acrescentando "ser inédito" para ele atuar no combate a festas, mudança ocorrida por causa do novo coronavírus.

Segundo o inspetor, dias depois a GCM foi a outras chácaras, onde a corporação havia identificado a organização de eventos, por meio de investigação. Ao chegar nos locais, porém, as festas haviam sido canceladas. "O dono de uma das chácaras afirmou ter devolvido o dinheiro aos organizadores, após perceber a gravidade deste tipo de evento, ao ficar sabendo das 158 prisões feitas na outra festa”, relembra.

Em Diadema, também no ABC, o secretário municipal de Defesa Social Benedito Mariano afirmou que, em razão da pandemia, mais de 80% do efetivo da GCM atua em ações de fiscalização e também no monitoramento de aglomerações em pancadões.

Segundo ele, há sete pontos “viciados”, dos quais seis costumavam aglomerar entre 500 e 1.500 jovens, em bailes funk a céu aberto. Como medida de dispersão, ele direciona equipes aos seis pontos, antes do início dos bailes, impedindo que as aglomerações ocorram.

"Nosso intuito é evitar o conflito [eventualmente possível] com dispersões. Para isso, impedimos o início dos eventos, com a presença de nossos guardas nos locais [entre a noite e a madrugada]," explicou.

Sobre eventuais migrações de jovens para outros pontos de aglomeração, longe dos seis apontados pelo secretário, ele adiantou já preparar uma ação de monitoramento, que por questões estratégicas não foi informada.

A Prefeitura de São Bernardo do Campo (ABC) passou a usar um helicóptero para localizar aglomerações em chácaras da cidade. No último dia 14, um grupo de pessoas, irregularmente reunidas às margens da represa Billings, foi flagrada em um dos voos - Divulgação/Prefeitura São Bernardo do Campo

Antonio Soares Fonseca, comandante da GCM de Diadema, atua na corporação há 20 anos e afirmou que, graças à pandemia, realiza trabalhos jamais feitos anteriormente, como monitorar a organização de festas.

Ele afirmou que de 6 de fevereiro, até o momento, foram feitas 700 ações de fiscalização na cidade, resultando em 560 advertências e 108 multas, entre R$ 3.600 e R$ 7.000.

O 2º DP e 4º DP de Diadema instauraram Inquéritos Policiais para apurar a ação de donos de adega, supostamente responsáveis pela organização dos pancadões e festas clandestinas. Além disso, o 3º DP da cidade analisa dois casos com o intuito de constatar infrações penais, ou de natureza sanitária, "para a adoção de medidas."

Polícias Civil e Militar

Para garantir a segurança dos agentes sanitários e da saúde, as polícias Civil e Militar, além da GCM, acompanham as ações de fiscalização em locais que descumprem as determinações do Plano São Paulo.

O delegado Eduardo Brotero, do Garra (Grupo Armado de Repressão a Roubos), destacou que as ações de seus agentes, antes da pandemia, eram focadas na criminalidade organizada, no cumprimento de mandados de prisão de alto risco, e na investigação a roubos de carga, além de agências bancárias.

Após o início da pandemia, porém, e com a fase vermelha do Plano São Paulo, policiais do Garra passaram a dar apoio nas ações conjuntas de combate a aglomerações, inclusive investigando e localizando locais onde elas ocorrem. O grupo especial está integrado ao Dope (Departamento de Operações Policiais Estratégicas).

“Quando prestamos um serviço desse, prestamos muito além do trabalho policial. Eu, particularmente, quando saio para uma operação dessa, penso no quanto a humanidade está sofrendo por causa desse vírus, que destrói famílias, deixando crianças orfãs”, desabafou.

Com a criação da força tarefa, para monitorar o descumprimenro às regras sanitárias de prevenção ao novo coronavírus, as operações comandadas por Brotero focam em ambientes e "alvos" antes nunca trabalhados em investigações. “Além dos jovens em festas clandestinas, também identificamos casas de jogo de azar, com idosos, também com o intuito de combater a aglomeração [além da ilegalidade do jogo clandestino]. Basicamente, se trata de um novo tipo de abordagem.”

O policial afirmou vislumbrar com otimismo o fim da pandemia, possível com uma campanha de vacinação efetiva. “Quando houver uma campanha de vacinação em massa, vamos sair dessa. Aí teremos orgulho ao constatar que cada policial deu exemplo aos filhos [combatendo a disseminação do vírus]. Isso nos motiva a prosseguir.”

Na madrugada desta sexta-feira (19), o Garra acabou com uma festa clandestina, por volta da 1h em Carapicuíba (Grande SP), em parceria com a Vigilância Sanitária estadual e Procon. No local estavam aglomerados mais de 100 jovens, sem máscaras, bebendo e compartilhando narguilés (cachimbos de água, orinundos do oriente, usados para fumar tabaco).

A Polícia Militar afirmou, em nota, ter realizado 53 mil dispersões no estado , desde 26 de fevereiro até o momento, das quais 24.301 foram na capital paulista. Durante o período, a corporação também afirma ter acabado com 417 festas clandestinas no estado, sem informar quantas deste total foram na cidade de São Paulo.

Com o início da "fase emergencial", no dia 15, as ações de policiamento e fiscalização foram intensificadas, segundo a SSP (Secretaria da Segurança Pública), gestão João Doria (PSDB).

"Os programas de patrulhamento preventivo e ostensivo ampliaram suas atividades, assim como o uso de mensagens informativas à população, os pontos de policiamento e as demais ações a fim de garantir o respeito às normas e a legislação vigente" diz trecho de nota.

A pasta acrescentou que as polícias Civil e Militar também intensificaram o apoio às ações conjuntas, em especial no período noturno.

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