Idosos contam histórias para resgatar a memória de São Paulo

Projeto Recorda SP busca relatos para livro sobre personagens da cidade e receitas

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São Paulo

Um jornalista que também é responsável por cuidar de um patrimônio tombado, uma psicóloga aposentada que é bisneta do tenente general José Arouche de Toledo Rendon e uma alagoana de coração paulistano que diz que o segredo da vida é ser feliz. O que eles têm em comum? Os três são idosos que toparam fazer parte do projeto Recorda SP.

O projeto acaba de ser lançado e é uma das 70 ações que constam no Plano Intersetorial de Políticas Públicas para o Envelhecimento da Prefeitura de São Paulo.

Sob a coordenação da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o projeto visa a valorização dos idosos, o resgate e o registro de histórias dessa parcela da população e, consequentemente, da cidade.

Martha Arouche, 71 anos, foi uma das primeiras a responder ao questionário do Recorda SP - Rivaldo Gomes/Folhapress

Por meio de um questionário, os idosos contam suas histórias, trazem à tona lembranças do passado, modo de vida e até receitas culinárias.

Segundo a secretaria, as informações obtidas no projeto serão armazenadas em uma base de dados e utilizadas em programas, serviços e atividades da prefeitura que promovam o protagonismo do idoso e a intergeracionalidade.

"Além disso, será feito uma curadoria para escolher algumas histórias, personagens e receitas culinárias para a publicação de edições anuais dos livros "Vidas Paulistanas e "A Cozinha dos Avós", afirma Renato Souza Cintra, coordenador de Políticas para a Pessoa Idosa da SMDHC.

O questionário já está sendo aplicado para pessoas com 60 anos ou mais que frequentam serviços da prefeitura que oferecem atividades relacionadas ao envelhecimento ativo, como o Polo Cultural da Terceira Idade e as Unidades de Referência à Saúde do Idoso (URSI).

Ele também está disponível para todos os idosos da cidade no site da Secretaria de Direitos Humanos.

O projeto surge em um momento de aumento da expectativa de vida no país. Atualmente, 15% da população da capital paulista tem 60 anos ou mais e a previsão da Fundação Seade aponta que essa porcentagem chegará a 30% em 2050.

Cintra explica que a secretaria percebeu que há uma demanda desta população em ser ouvida e que o projeto criado pretende mudar a visão da sociedade sobre o idoso, demonstrando que essas pessoas têm importantes lições a serem compartilhadas.

"Esses idosos poderão ser convidados a participar diretamente de aulas e palestras da rede pública de ensino, rodas de conversa, oficinas e painéis em equipamentos de cultura, direitos humanos, ou saúde, sempre relacionados aos assuntos relatados no Projeto", afirma a secretaria.

Raízes paulistanas

Uma das primeiras pessoas a participar do projeto, a psicóloga aposentada Martha Arouche, de 72 anos, respondeu ao questionário em abril, quando o Recorda SP ainda estava em fase de testes.

Martha é, como ela mesmo diz, uma paulistana de família "quatrocentona". Nascida e criada na Vila Monumento, no Cambuci, região central de São Paulo, ela traz no sobrenome parte importante da história da cidade.

Martha é bisneta do Tenente General José Arouche de Toledo Rendon, que, entre outras muitas coisas, foi o introdutor da cultura do chá em São Paulo. Ele era dono de uma fazenda que ocupava boa parte do centro e que, mais tarde, deu origem a bairros como a Vila Buarque. O Largo do Arouche, famoso ponto da capital paulista, tem esse nome em sua homenagem.

Mas não pense que a psicóloga é do tipo de pessoa que saí contando seu sobrenome ou a história de sua família em cada canto da cidade. "Minha avó contava várias histórias para a gente sobre a família e era engraçado porque ela ficava muito brava comigo porque eu não ligava muito para o nome de Arouche. Tem gente da família que faz questão de dizer que é Arouche de Toledo, mas eu não", afirma Martha com bom humor.

Ela conta que respondeu o questionário com alegria porque acha que resgatar as histórias dos idosos é também resgatar a história da cidade.

Martha trabalhou em creches e em escolas com foco em crianças com algum tipo de deficiência. Foi casada, único período em que morou fora do Cambuci, mas se separou e voltou para o bairro, onde mora hoje com a irmã. Animada, conta que pratica várias atividades no Polo Cultural da Terceira Idade José Lewgoy, que fica próximo à sua casa, desde 2017.

"Jogo capoeira, faço alongamento, pilates, teatro e dança. Já fiz aula de cozinha também", afirma Martha. E, segundo ela, nem a pandemia a desanimou. "Mesmo com a pandemia eu não fiquei parada. Eu moro numa quadra grande, então colocava minha máscara e fazia caminhada todo dia. Consegui lidar com a situação com tranquilidade. Minha irmã ficou em pânico, mas eu não".

A psicóloga aposentada diz que contou ao projeto muitas lembranças da infância como brincadeiras das quais adorava participar. "Eu brincava muito aqui na rua, eram muitas crianças. A gente brincava de pega-pega, de esconde-esconde, de pular corda. Também contei que minha vó tinha um sítio e que lá eu brincava com meus irmãos, nadava no rio, subia em árvore".

Dona Martha Arouche traz ainda vivas na memória lembranças como as idas ao teatro municipal com o pai, que era barítono, e momentos marcantes da cidade de São Paulo. "O Quarto Centenário de São Paulo me marcou muito. Eu era criança e eu me lembro dos papéis laminados caindo dos aviões na praça. Me lembro também de brincar em lugares aqui no centro que já não existem mais", diz saudosa.

Para completar a participação no projeto, Martha decidiu passar uma receita de família, o chamado cuscuz da Narcisa. "Narcisa era uma moça que trabalhava na casa da minha bisavó, eu acho. Ele é um cuscuz da época dos bandeirantes que minha avó fazia e eu gostava de fazer junto com ela. Minha tia faz até hoje num cuscuzeiro de barro. Essa comida recorda muito a minha infância", afirma a idosa.

O herdeiro do relógio

Na Praça Antônio Prado, no centro de São Paulo, está o último relógio de uma série que foi criada e instalada pelo publicitário Octávio De Nichile em 1935. Com uma proposta inovadora para a época, o "relógio De Nichile" tem espaços para propagandas na estrutura que o sustenta. O último exemplar foi tombado pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e hoje está sob a responsabilidade de um dos filhos de Octávio, Gilberto de Nichile, de 83 anos.

Gilberto De Nichile, 84 anos com o relógio na praça Antônio Prado - Rivaldo Gomes/Folhapress

Jornalista e psicólogo, Gilberto conta que tira do próprio bolso o valor da manutenção da herança deixada pelo pai. "Ele ficou sob minha responsabilidade depois que meu irmão faleceu. Gasto mais ou menos R$5 mil reais por mês com ele e agora estou restaurando. Apesar de ter espaço para publicidade, não tem nenhuma no momento", afirma De Nichile.

Ele é mais um dos idosos que aceitou contar suas histórias ao projeto Recorda SP.

Jornalista formado pela Faculdade Cásper Líbero, em um período em que ela era a única universidade a ter o curso de jornalismo na cidade, ele conta que já teve a oportunidade de trabalhar em diversos jornais importantes, inclusive em alguns que já nem existem mais.

As histórias de De Nichile apontam para uma vida movimentada. Ele chegou a trabalhar "dois ou três anos" na área do pai, publicidade, mas conta que não gostou da experiência. "Parei porque eu não gostava daquilo, fazer anúncios não é minha praia. Estaria rico se tivesse continuado, mas não era o que eu gostava de fazer", afirma às gargalhadas.

Ele conta que, aos 25 anos, chegou a morar fora do Brasil após uma grande perda. "Minha namorada da época também era jornalista e faleceu em um acidente de carro voltando de São Roque. Fiquei desconsolado e decidi ir embora daqui. Peguei um dinheiro que eu tinha, entrei num navio e fiquei três anos zanzando pela Europa".

De volta ao país, ele revela que não queria voltar a trabalhar com jornalismo, mas que acabou retomando a carreira. Até que, em 1975, foi chamado para trabalhar na recém-criada Secretaria de Cultura. "Entrei para fazer uma experiência, ficar uns seis meses talvez e já estou lá há 42 anos. Sou praticamente uma peça de museu lá", afirma com bom humor.

Hoje, Gilberto é casado e tem dois filhos. Apenas um neto, já que, segundo ele, "hoje as pessoas não querem mais ter filhos". Ele diz que a mãe teve seis filhos, a tia 7 e a avó 10. Mas pondera, "com o passar do tempo as coisas mudaram e acho que a vida da mulher mudou para melhor, agora elas podem fazer suas escolhas, não precisam passar a vida toda apenas tendo filhos. Minha filha mesmo não quer ter nenhum".

Inquieto, De Nichile conta que, há 25 anos, decidiu fazer faculdade de psicologia e que, desde então, também atua na área em um consultório que abriu.

"Também faço um pouco de exercício, de ginástica, jogo tênis, boliche e bilhar. Gosto de me manter ativo. Minha esposa não vai comigo, mas não me inibe. É minha companheira há mais de 40 anos e me apoia bastante", afirma o jornalista.

Para ele, projetos como o Recorda são muito positivos porque valorizam os idosos. Ele, aliás, é defensor da prática de atividades físicas e intelectuais pelos idosos.

"Acho que alguns idosos não sabem aproveitar o resto de vida que tem, ficam numa vida muito sedentária, só sentados no sofá vendo TV. E agora ainda tem o celular. Aí acaba não dando tempo de viver".

Ele elogia inciativas que "tiram os idosos do sofá". "Eu acho muito legal essas iniciativas que valorizam o idoso. Tem associações, grupos e iniciativas que levam os idosos para passear, fazer viagens, para correr no parque, para dançar...".

Gilberto mesmo é o que se chamaria há alguns anos de "pé de valsa". "Eu gosto de dançar. Uma pena que, com a pandemia, não dava né, mas eu gosto bastante".

'O segredo é ser feliz'

Quitéria Bezerra Alves, de 81 anos, é aposentada e faz parte de um outro grupo da população de São Paulo: daqueles que não nasceram aqui, mas que vieram para cá, construíram suas vidas e também a história da cidade.

Dona Quitéria nasceu em Alagoas, estado do nordeste do país. Ela conta que perdeu a mãe com apenas cinco anos e que, daí por diante, passou a ser cuidada por uma irmã mais velha. A irmã veio para São Paulo e a deixou por um período com o pai, mas depois voltou para buscá-la.

"Cheguei no interior de São Paulo com 13 anos e fui trabalhar em uma fazenda de plantação de café", conta Quitéria. E foi nessa cidade onde, 4 anos depois, ela conheceu o homem que viria a ser seu marido.

"Meu esposo foi passear lá uma vez e nós nos encontramos. Namoramos só três meses e nos casamos. Eu tinha 17 anos. Juntos viemos para São Paulo em 1958", relembra a aposentada.

Mas, segundo ela, a vida na capital não foi fácil. "Trabalhei muito, tive uma vida muito difícil. Trabalhava lavando roupa para as pessoas, rapazes que vinham do Nordeste e moravam sozinhos. Eu lavava e passava para eles e para comércios também, para padarias", afirma Quitéria.

Ela e o marido compraram um terreno no bairro Jardim Brasil, na zona norte, em 1960, e foi nesta casa que dona Quitéria criou seus 5 filhos, viu seu companheiro falecer após 59 anos de casados e onde ela vive até hoje.

"Trabalhei de servente de pedreiro também, até ajudei a subir as paredes aqui de casa. Na verdade, faço as coisas até hoje. Eu ajudei o moço a terminar de pintar meu quintal outro dia", afirma orgulhosa.

Quitéria se sente orgulhosa da disposição que tem. Ela conta que acorda às 4h da manhã todos os dias e logo já vai fazer sua caminhada no quintal.

"Se eu ficar deitada no sofá fico até doente. Eu vou sozinha nos médicos e ele me são bronca porque estou sem acompanhante, mas eu não preciso disso", afirma a aposentada.

Há apenas uma coisa que prende dona Quitéria no sofá: jogos do Corinthians.

"Eu adoro futebol. Só o Corinthians me faz ficar duas horas sentada no sofá. Brinco com meu bisneto que é palmeirense e chamo ele de corinthiano. Ele fica bravo", conta às gargalhadas.

Quitéria tem 12 netos e três bisnetos e, segundo ela, é o amor que sente por eles que a faz viver mais.

"O segredo é ser feliz. Dificuldade todo mundo tem, mas a gente tem que ser feliz, olhar para a nossa família, para as coisas boas, mesmo que sejam pequenas", aponta a aposentada.

Ela respondeu ao questionário do Recorda SP em uma UBS (Unidade Básica de Saúde) próxima à sua residência e, assim como Martha Arouche, decidiu passar uma receita. "Eu dei a minha receita de galinhada, que é a minha comida preferida".

Dona Quitéria conta orgulhosa que os netos adoram sua comida e que sempre pedem alguma receita especial. "Essa semana mesmo um deles pediu para eu fazer um cuscuz e eu fiz com muito gosto".

As receitas

Cuscuz da Narcisa - Martha Arouche

Para misturar: Duas xícaras de farinha de milho, duas xícaras de farinha de mandioca amarela torrada, uma salmoura ou uma calda de camarão fria.

Para refogar: torresmo, linguiça frita, pedaços de camarão, cebola, cebolinha verde, alho, tomate. Todos os itens bem picados. Acrescentar pimenta e colorau ou molho de tomate para dar cor.

O prato ainda leva ovos cozidos, azeitonas pretas, salsa, manjerona, louro e gordura.

Um quarto de toucinho, peixe cru (bagre ou marisco) ou carne de porco ou de galinha.

Galinhada - Quitéria Bezerra

Segundo Quitéria, o segredo do prato são os temperos que vão para a panela junto com a galinha.

Eles são: alho, cebola, coentro, tomate picado, cominho, pimenta do reino e sal.

Projeto Record SP

Acesse o questionário que está disponível na página da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.

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