Na madrugada mais fria do ano da cidade de Paulo, quando os termômetros marcaram temperatura média mínima de 4ºC, sobraram colchões em um abrigo emergencial, na estação Pedro 2º, da linha 3-vermelha do metrô, enquanto pessoas perto do local, ou em bairros próximos, estavam ao relento ou dormiam em barracas de camping armadas ao lado de tendas de apoio montadas pela prefeitura.
Desde quarta-feira (28), quando as temperaturas caíram drasticamente na capital, uma ação humanitária foi iniciada pelo município para oferecer apoio às pessoas em situação de rua. Até esta quinta-feira (29), segundo a prefeitura, haviam sido distribuídos 1.840 cobertores e agasalhos, 5.000 sopas e a mesma quantidade de bebidas quentes, como chocolate e chá.
Também até quinta foram realizados 300 acolhimentos para abrigos, dos quais 73 em uma das cinco tendas distribuídas nas praças da Sé e Princesa Isabel, ambas na região central; Barão de Tietê, na Mooca (zona leste); na praça Miguel Dell’erba, na Lapa (zona oeste), e na praça Salim Farah Maluf, em Santo Amaro (zona sul), de onde os atendimentos foram transferidos, nesta quinta, para a praça Floriano Peixoto, na mesma região.
O censo mais recente feito na cidade, em 2019, localizou 24,3 mil pessoas em situação de rua, um salto de 53% em quatro anos, considerando os 15,9 mil do levantamento anterior, de 2015.
Um dos locais onde pessoas em situação de rua se aglomeravam ao redor de fogueiras, para se esquentar do frio de 4ºC —segundo termômetro portátil usado pela reportagem— estava nas proximidades do terminal Parque Dom Pedro 2º.
O abrigo masculino na estação Pedro 2º, montado desde a quarta, acolheu 50 pessoas na primeira noite, segundo a gestão João Doria (PSDB). Por volta das 2h20 desta sexta, porém, somente 23 usavam da estrutura, montada para atender até 400 pessoas.
Para chegar ao abrigo, os interessados precisam conversar antes com um representante da Pastoral do Povo de Rua, que fica a noite toda em frente ao acesso da estação. Após o cadastro, o hóspede desce 48 degraus, para acessar um subterrâneo do metrô, longe de passageiros.
Comendo uma sopa, pois havia perdido o sono, o músico Jonathan Sampaio Oliveira, 33 anos, passava sua primeira noite no abrigo emergencial do metrô. Nas ruas desde os 19 anos, quando o pai morreu, ele afirma que o vício em cocaína o levou à atual situação sem lar. "Não peço ajuda para meus familiares, pois já tentaram me ajudar e tive recaída. Mas quero e vou sair dessa situação [de rua]."
Ele optou em dormir na estação do metrô, pois alegou ser menos demorado e burocrático do que um albergue padrão. "Só evito dormir na rua, pois é muito ruim, ainda mais neste frio", disse, acrescentando que, além do acolhimento, ganhou comida, roupas de frio e apoio moral dos voluntários.
Conseguindo acolhimento
Caminhando lentamente, bem agasalhado, carregando sacola na mão direita, mochila nas costas e cobertores com o braço esquerdo, o ex-auxiliar de serviços gerais Rogério Silva de Oliveira, 43 anos, se preparava psicologicamente para encarar uma noite ao relento, nas proximidades do terminal de Santo Amaro.
Era por volta das 23h50 de quinta quando ele, natural de Ponta Nova (MG), revelou "ter passado da conta" ao beber cachaça, por causa do frio. "Exagerei um pouco e perdi a noção de tempo. Por isso não consegui ver se tinha vaga em algum albergue", afirmou.
Apesar de usar três blusas de frio, uma calça, gorro, meias, sapato e luvas, Oliveira afirmou que a noite de quinta para esta sexta-feira (30) é a em que mais passa frio em São Paulo, onde mora há 20 anos, estando em situação de rua há cerca de três. "Nunca senti isso, esse vento cortante, dá desespero de pensar em dormir na rua onde, além de tudo, não tem higiene nem segurança nas calçadas". No momento em que ele falava, o termômetro portátil usado pela reportagem marcava 4ºC.
Ao ser informado de que poderia ainda ser encaminhado para um abrigo emergencial, Oliveira se aliviou. Ele foi uma das 30 pessoas que toparam ser acolhidas, após serem orientadas por pessoas que trabalham na tenda no entorno da qual, porém, dezenas de moradores de rua dormiam em barracas de camping, ou estavam ao relento, com corpos e cabeças cobertas com mantas, predominantemente cinzas.
Furtado e sem meias
Os termômetros marcavam 5ºC, às 23h26 desta quinta-feira, quando José Roberto de Faria da Silva, 45 anos, percebeu que a sacola com todos seus pertences, incluindo um par de meias doados instantes antes, havia sido furtada na praça Floriano Peixoto, em Santo Amaro.
Ele caminhou após isso, calçando chinelos e com os pés descobertos, até a tenda de atendimento emergencial, armada no local.
“Estou em São Paulo faz uns oito anos, vim para cá depois de terminar meu casamento, em Pernambuco. Vim para rua faz dois anos, quando perdi a mão na cachaça, para chorar minhas dores”, relatou o homem, vestido com uma calça fina e uma jaqueta sobre duas blusas de frio.
Bebendo um chá, ele afirmou que iria dormir na rua esta noite, pois "não gosta de albergue nem de abrigo". "Quero beber e, nestes lugares, não dá para fazer isso."
Ele segurava um cobertor, doado por profissionais, que servem na tenda da praça durante toda a madrugada. Um deles, que atua no Seas (Serviço Especial de Assistência Social), da prefeitura, tentou sem sucesso convencer o pernambucano a ir para um abrigo.
Uma funcionária afirmou, em condição de anonimato, "ser um desafio" abordar pessoas em situação de rua, quando moradores da região requisitam, por meio do número de emergências 156, pedidos de acolhimento, mas sem consultar a pessoa em situação de vulnerabilidade.
“Ninguém pode ir arrastado para o abrigo. Há casos em que a abordagem de rua é chamada, mas a pessoa não quer ir para o abrigo e chega até a jogar coisas em nós. Isso acontece pois tem gente que, apesar de bem intencionada, não tem ciência de que algumas pessoas preferem ficar nas calçadas”, explicou.
Dezenas ao redor de tenda no Brás
Se durante o dia o Largo da Concórdia é frequentado por centenas de ambulantes e milhares de pedestres, no período noturno o local, no Brás (centro), é tomado por dezenas de barracas de camping, usadas por pessoas em situação de rua, ou ainda por alguns homens protegidos somente com cobertores e roupa de frio. Por volta das 1h40, o termômetro usado pela reportagem na região se mantinha ainda em 4ºC.
Agentes da Defesa Civil afirmaram que, até por volta das 22h de quinta, 34 pessoas haviam sido acolhidas e distribuídos na tenda 75 cobertores, 48 copos d'água, 640 refeições, 800 bebidas quentes (chocolate e chá), além de 40 máscaras de proteção.
Os números resultaram de um movimento intenso, que durou entre as 19h até o fim da noite, segundo os agentes. Quando a reportagem chegou ao local, porém, a tenda parecia uma ilha rodeada por barracas e pessoas dormindo no chão, como o ex-auxiliar Ivair Alex Messias, 43 anos, dos quais cinco nas ruas.
O motivo para ele dormir ao relento não se difere do de muitos "irmãos de rua", decepcionados com o fim de relacionamentos, motivados e encarados com muito álcool. "Eu morava em Jandira [34 km de SP], mas meu casamento acabou, porque eu bebia muito. Aí vim para a capital e passei a beber mais. Queria muito ajuda para poder parar [de beber] e recomeçar minha vida", afirmou.
Usando três cobertores, duas blusas de frio, além de calça, meias e luvas, ele afirmou ser isso o suficiente para encarar a friaca. "Mas estou sentindo que está muito mais frio do que os outros dias", afirmou, acrescentando não gostar de albergues ou abrigos.
Ele era uma das poucas pessoas em situação de rua acordadas no início da madrugada e a única que topou conversar. As pessoas nas barracas permaneceram recolhidas o tempo todo em que o Agora ficou na região.
A prefeitura organiza a Operação Baixas Temperaturas sempre que os termômetros registram temperaturas menores de 13ºC na cidade. Neste ano, já acolheu 5.315 pessoas nas madrugadas em maio, 5.412 em junho e 4.702 até o dia 25 de julho.
Madrugada mais fria do ano
Como previsto, a capital paulista bateu um novo recorde de frio na madrugada desta sexta-feira (30), quando os termômetros marcaram 4ºC de temperatura média mínima, segundo o CGE (Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas), da Prefeitura de São Paulo. Em Marsilac, extremo sul da cidade, foram registrados 2ºC negativos.
Na quinta-feira (29), a média mínima de 4,7ºC havia sido a mais baixa desde 2016, quando foram registrados 3,5ºC. Por causa da massa polar, que chegou à cidade nesta quinta, vinda do sul do país, a tendência é a de que os próximos dias continuem gelados, mesmo com sol.
"O ar frio polar só deve começar a perder força a partir do início da próxima semana, quando as temperaturas se elevam gradativamente", diz trecho de nota do CGE.
O recorde de frio anterior neste ano foi registrado no último dia 20, com a mínima média de 5,4°C, e a mínima absoluta de -2,3◦C, também em Marsilac, segundo os dados do CGE.
Para esta sexta há a previsão de céu claro, com poucas nuvens, tendo como máxima 15ºC e mínima 3ºC. No sábado o frio permanece, com mínima média prevista em 7ºC e máxima de 16ºC.
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