Quando a pandemia mostrou que veio para ficar e arrancou até um prato de comida da frente de boa parte da população, pessoas comuns surgiram do meio do povo para matar a fome de quem passa necessidade. A compaixão e a solidariedade levaram muitos paulistanos para a beira do fogão no último ano, esquentando panelas, preparando lanches e marmitas para distribuir em ruas, praças e favelas. Um trabalho de formiguinha, de caridade genuína e exemplar. Veja ao final como ajudar.
Casado, dois filhos e um prazer gigantesco em cozinhar para a família. O profissional de marketing Adriano Carlo de Luca, 36 anos, fazia comida de sobra em meados do ano passado e se incomodava com a crise humanitária que se avizinhava. “Pensei ‘com esse tanto de comida, a gente pode ajudar as pessoas no combate à fome. Vou começar a fazer ainda mais’”, conta. E fez então as primeiras 15 marmitas. Hoje são 60.
De Luca procurou entidades que pudessem indicar para onde mandar o alimento e foi direcionado a uma liderança comunitária de Heliópolis (zona sul). Logo, surgiram amigos que se entusiasmaram e abraçaram a causa. Hoje são oito pessoas envolvidas na ação, cozinhando separadamente os ingredientes das refeições, que são montadas por um integrante do grupo. “Tem até uma conduta ética. A comida é a mesma que comeríamos em casa”, diz.
A entrega é feita semanalmente, às terças-feiras, por um motorista contratado por eles. Uma pessoa que também tinha perdido o emprego e, com isso, é ajudada pelos amigos.
O grupo, chamado de Amar-Mita, conseguiu ir além da alimentação e também já doou cobertores, brinquedos, além de promover ações especiais em datas festivas. A generosidade continua atraindo gente solidária. “Na semana passada, ganhamos um freezer de doação. No dia seguinte, um amigo ofereceu um espaço para usar como base da marmita”, diz De Luca.
Solidariedade
Ao menos às quartas-feiras, a noite é menos árida e triste para quem vive nas ruas da Baixada do Glicério (região central). O pequeno grupo do qual faz parte a diretora de escola Patrícia Christiane Hypoliti, 49, com cinco pessoas, distribui marmitas e atenção que não tem preço. “A gente doa muito mais do que alimento. É amor, carinho, respeito e olhar a pessoa como um ser humano”, conta.
Na última semana, foram 85 refeições, acompanhadas de água e fruta, entregues por Patrícia e amigos. Eles faziam parte de um grupo maior, que passa por reestruturação e teve as atividades pausadas em janeiro. “Nos sentimos incomodados por não fazer nada”, conta, sobre a motivação para seguir em frente.
A diretora de escola lembra que falta de tempo não é motivo para deixar de ajudar. “Também trabalho e consegui me organizar. Sei que não vou resolver todos os problemas das pessoas, mas conseguimos alimentá-las. Isso afaga o coração deles.”
Famílias inteiras buscam comida nas ruas
O perfil das pessoas quem dependem de alimentação doadas nas ruas para sobreviver mudou muito no último ano. Empobrecidas, famílias inteiras têm evitado a fome com a ajuda de quem se dói pelo outro e faz a sua parte em meio à crise.
O casal de venezuelanos Elis Estevan, 25 anos, e Rosmary Josefina Garcia, 26, chegou ao Brasil há dois anos, antes da pandemia. Primeiro, viveram em Pacaraima, Roraima. Depois passaram apuros no Rio de Janeiro, onde moraram na rua por um mês. Há três semanas, eles estão em São Paulo, acompanhados do filho, Aaron, 5, e da sobrinha Rosangeles, 7. “Viemos para cá, porque a situação por lá também está bem difícil”, disse, enquanto aguardava o almoço no Chá do Padre, da Sefras (Associação Franciscana de Solidariedade).
A família está em abrigo próximo ao largo do Paissandu e encara um problema que também afeta brasileiros: desemprego. “Estou todos os dias nas ruas procurando almoço para o meu filho, porque ele acorda e já diz ‘pai, tenho fome’. É muito doloroso, meu coração fica doendo, porque não tenho emprego. Falo para ele ‘fica tranquilo, porque Deus vai prover o pão de cada dia”. Graças a Ele, tem sido assim”, diz Estevan, que já foi segurança, pedreiro e faz bicos em geral. “Tudo está fechado. Saio para fazer diárias, mas é muito pouco.”
Com o marido e dois filhos, de 10 e 4 anos, vivendo em barraca na rua, a cabeleireira Caliane de Castro Santos, 30, também não tem emprego e aguardava pelo almoço no Chá do Padre. “Tenho que ir onde tem comida para encher a barriga deles”, afirma.
Professor encontra forma de ajudar na dificuldade
A pandemia fez cair o número de aulas e o salário do professor universitário Marcelo de Melo, 52 anos. Mestre em matemática, ele agora complementa a renda carregando entulho dos vizinhos por R$ 5 o saco de 60 kg. Leva tudo a um Ecoponto no Brás (região central), onde mora, e foi lá que se comoveu com a situação de um jovem casal, que revirava o lixo atrás de recicláveis. “Vivem debaixo da ponte e precisavam de comida”, diz.
De volta ao condomínio, recém-construído, Melo decidiu convidar os demais moradores para preparar refeições para pessoas em situação de rua. “Tem o largo da Concórdia, a avenida Alcântara Machado. Muita gente precisa.”
Foi assim que surgiu, em 20 de março, o grupo “Angels of Piscine” (Piscine é o nome do condomínio). “Achei que faríamos 10, 20 marmitas. A gente acabou entregando 300 no último fim de semana”, diz Melo.
Cada voluntário prepara comida em seu próprio apartamento e, aos sábados, eles se reúnem no salão do condomínio para montar as marmitas, das 14h às 19h. “Em uma hora, distribuímos tudo. A entrega é rápida, porque é muita gente com fome”, diz.
Melo conhece as dificuldades da vida. Nos últimos meses, por conta do trabalho recolhendo entulho, emagreceu 15 kg. Quando mais jovem, trabalhou em feira livre para bancar a faculdade. Hoje, só espera que mais gente ajude para poder manter a oferta de comida para os necessitados.
Desemprego não impede solidariedade no centro
Hoje recepcionista, Ana Paula Farias, 41 anos, perdeu dois empregos em um ano e viu o marido também ficar desempregado. “Ganho metade do que ganhava”, diz. A grana curta, porém, não impediu que ela visse a miséria se alastrar pela Santa Cecília (região central).
“Na quarentena, passei um mês em casa e, quando saí, fiquei muito triste pela qunatidade de pessoas na rua. Vi uma delas pedindo comida e estava com cara de fome”, conta. No começo da pandemia, ela comprava um pacote de pão e distribuía entre os moradores de rua. “Não chegava nem na esquina, porque acaba antes”, diz.
Com a ajuda de amigos e a criação de uma rede de solidariedade, passou a arrecadar contribuições e já entrega 200 kits de lanche, com material de higiene. “É um hot dog todo caprichado, com salsicha, batata palha, envolvido em papel de entrega”, diz.
A propagandista Regina de Oliveira Nunes, 35, e o marido, Ricardo Nunes, 38, também mobilizaram amigos diante da crise humanitária. Começaram com 30 marmitas e hoje são 170 entregues perto das estações São Judas e Conceição, bem como na avenida Doutor Roberto Marinho. Criado por eles em setembro, o grupo Atalaias usa a cozinha do casal para preparar as refeições. “A proposta agora é ter um novo fogão e formas de armazenar a comida”, diz.
O exemplo de solidariedade vem dos tempos de juventude, quando ambos participavam de um grupo de apoio social na igreja que frequentavam. É algo que eles querem passar para frente. “A gente tem planos de envolver jovens e adolescentes nesse projeto, quando tudo isso passar.”
Chef começou com sopa e faz hoje 12 mil refeições ao mês
Ações promovidas em um pequeno grupo de amigos podem se tornar muito maiores do que o imaginado. Um exemplo é o Mesa Solidária, que nasceu há menos de dois anos, em maio de 2019, pelas mãos do chef Viko Tangoda.
“Tinha um buffet e tomei a iniciativa, porque era inconformado com o desperdício em eventos. Começamos distribuindo sopa na praça da Sé”, diz. Hoje, com a ajuda de parceiros e doações, são cerca de 12 mil marmitas por mês.
O trabalho desenvolvido pelo chef conta com a colaboração de até 50 pessoas na finalização, embalagem e distribuição das refeições. Entidades que vão do Sefras (Associação Franciscana de Solidariedade) até o departamento social da Gaviões da Fiel já contaram com o apoio de marmitas produzidas pelo Mesa Solidária, conta Tangoda.
O chef lembra que percebeu a importância de agir solidariamente quando um morador de rua afirmou que não tinha água potável para beber. “Foi como um tapa na cara. Fiquei 30 anos impondo condições para mim mesmo para fazer um trabalho. Só faltava querer talher de prata e copo de cristal, quando bastava vontade”, diz.
Número de doações caiu em relação ao início da pandemia
Gestor de desenvolvimento institucional da Sefras (Associação Franciscana de Solidariedade), Rodrigo Zavala afirma que o volume de doações caiu neste ano, em comparação com o início da pandemia. “Estamos falando em até 70% a menos. São doações de alimentos, marmitas e em dinheiro. Também de voluntários. Todos esses recursos já não temos tanto.”
Segundo Zavala, em abril do ano passado havia muita gente sensibilizada com a situação, o que já não se vê mais.
O gestor da Sefras afirma que, até o ano passado, 42% das refeições eram entregues nos postos de distribuição a pessoas que viviam em cortiços ou habitações precárias, e que dependiam das marmitas para sobrar grana para o aluguel. “O que estamos percebendo agora? As pessoas que antes tinham uma casa, mesmo que precária, hoje estão na rua.”
Veja como ajudar
Contatos dos projetos
- Amar Mita
Site: amarmitaprojeto.wordpress.com/contact
Instagram: @a_mar_mita
- Patrícia Christiane Hypoliti
Instagram: @paty_christiane
- Angels of Piscine
email: professormarcelomelo@gmail.com
- Ação Mãos Amigas
Instagram: acao_maosamigas_
- Grupo Atalaias
email: atalaiasdobem@gmail.com
Instagram: @atalaiadosbem
- Mesa Solidária
Site: mesasolidaria.org.br
- Serviço Franciscano de Solidariedade
Site: sefras.org.br
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